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domingo, dezembro 17, 2006

A estatística da vergonha!



Soube há poucos dias que pertenço ao restrito grupo dos 10% mais ricos do mundo e, curiosamente, ao invés de sentir orgulho, senti uma enorme vergonha. Senti vergonha por saber que 90% das pessoas têm pouco, demasiadamente pouco para viver condignamente. Embora não pertença ao excelso e exclusivo número dos 2% que detém mais de 50% da riqueza mundial, ainda assim considero que pouco mais fiz do que ter tido a “sorte” de nascer numa parte do mundo que habilidosamente tem espoliado as outras partes das suas riquezas e, deste modo, vive esbanjando o que melhor distribuído faria deste mundo um mundo mais justo. Quis o acaso que não nascesse no coração de África ou num qualquer subúrbio de Nova Deli e, em virtude desse privilégio, que nada fiz por merecer, não sei o que é a fome, o frio ou o sofrimento atroz de ver morrer os meus à míngua de tudo o que torna a vida possível.
Quando cada um dos mais de 5 biliões de seres humanos exigir a quota-parte de felicidade a que tem direito, quando resolverem pedir a parte da riqueza que lhes foi sonegada e que outros com usura acumularam e viciosamente ostentam, nesse dia não nos bastará o traçado fictício das fronteiras, nem exércitos e polícias nos valerão, a razão pode demorar mais tempo do que a força a vingar mas ela há-de sobrevir como aquelas sementes que por muito tempo que passe apenas aguardam um solo fértil que lhes permita abrir caminho até ao Sol.

terça-feira, novembro 28, 2006

A uma filha do vento


Tem um olhar de veludo, um corpo franzino esculpido na fome, uma voz mansa e pouco mais, para além da miséria tão absurda onde o próprio sonho é um luxo inalcançável. Contudo, já sabe, como as crianças nunca deveriam saber, que o frio traz lâminas inclementes nas intermináveis noites de Inverno. E no desaconchego absoluto da palha, certamente, muitas foram as vezes em que mordeu os lábios para não acordar os cinco irmãos com o choro não dos olhos mas da alma. A boneca mutilada que já testemunhou noutros lugares a felicidade é agora cúmplice da longa espera de quem nada espera. Chove copiosamente deste lado do mundo e esta menina cigana que mereceria o conforto que nós esbanjamos contará a medo, com os pequenos números que sabe, cada gota de chuva que escorrendo pelo puído pano da tenda lhe escorre pelo corpo e a impede de adormecer, de esquecer, de morrer brevemente para interromper o infausto ciclo da dor. Guardo o teu sorriso sem saber a que baú assombroso o foste buscar. Guardo o brilho inocente dos teus olhos como uma dávida de ternura de quem tudo dá porque mais nada tem para dar. Mas grito a plenos pulmões a raiva e a revolta contra os deuses e os homens que se esqueceram de te amar!

Foto Erik Reis

sexta-feira, novembro 24, 2006

Quem chora as borboletas nos dias em que morrem?


De tempos a tempos vêm-me à memória as palavras da Maria Joana, a professora de português que há umas décadas atrás se cruzou no meu caminho, dizia ela que as únicas pessoas verdadeiramente livres eram os vagabundos, porque esses nada tendo nada temem perder e a liberdade é exactamente essa ausência de amarras que a posse do que quer que seja imediatamente institui. O vagabundo possui de seu os passos, os caminhos que faz ao caminhar, o ar que respira e a fome que engana com ardis de ocasião. Não é seu o brilho das estrelas, nem o luar baloiçando no rio, nem tão pouco o frio de Dezembro, embora os conheça como ninguém. Vive cada dia à vez, nada o prende ao passado e nada o chama do futuro. É inteiro porque se leva todo para onde quer que vá. Enquanto nós, arrastamos a cada passo as grilhetas dos compromissos, o medo de que nos subtraiam o que chamamos nosso, a angústia permanente de que façamos o que fizermos nunca havemos de ser suficientemente felizes. A morte assusta-nos não porque seja inevitável mas porque nos há-de separar irremediavelmente do que acumulámos com tanto esforço e obstinação. O vagabundo morre todos os dias em paz, só de si ele sentirá falta se não voltar a acordar. Quem chora as borboletas nos dias em que morrem?

segunda-feira, outubro 30, 2006

Navegações interiores


Podia perfeitamente ser um marinheiro, daqueles clássicos com camisola às riscas e sacola desbotada às costas. Talvez trouxesse um chapéu à Corto Maltese e a memória cheia como uma maré viva. Havia de se lembrar das mulheres que nas tascas dos portos têm o olhar lascivo reflectido nos copos sempre vazios e amam brevemente entrecortando a respiração. Possivelmente, no rosto, num braço ou fundo no peito, teria uma cicatriz a marcar a dureza que acaba as conversas que falam com suspeita da honra. O caminhar teria que ser ondulante para tornar evidentes as longas travessias dos oceanos e teria no bolso mais próximo do coração uma fotografia sépia de alguém que quase já esquecera o nome. Teria certamente a voz rouca enrolada em tempestades e acenderia cigarros em cigarros para estar rodeado de um perpétuo nevoeiro lugar onde começam todas as aventuras. As mãos haviam de ser rudes como as amarras que mantém o barco fundeado incólume aos recifes que o reclamam com gritos alterosos de espuma. Perder-se-ia numa pensão barata com cheiro a salitre e com janelas incompetentes para emudecer a voz do mar. Havia de olhar a sua vida por uma bússola que nunca soubera apontar o caminho da felicidade, mas apenas a imperativa necessidade de zarpar sempre para os lados em que o Sol é maior. Podia, perfeitamente, ser um marinheiro, ou qualquer um de nós, navegando os dias roubados ao oceano do tempo.

sexta-feira, outubro 27, 2006

de onde vêm as estrelas?


para os teus lados sopra a nuvem branca essa máquina de endoidecer os que amam as cores com nomes separam-se as pétalas dos lábios para adormecer numa cama dividida entre a água e a areia e ouvem-se os bichos da espera tecer casulos no teu corpo doce como as noites de luar absoluto
para os teus lados desaguam os rios de fogo e voam os pássaros de asas ambiciosas para quem o infinito é coisa ridícula nada se compara ao teu braço com hastes de fumo verde e ao teu torso polvilhado de rosáceas hexagonais que perfumado uma só vez pela primavera decisiva traz todos os poetas inebriados pela memória dos cheiros
para os teus lados irradiam todas as auroras desde o início dos tempos e há mesmo quem diga que as estrelas são sinais que um dia te desceram do corpo até ao céu dos homens

quinta-feira, outubro 05, 2006



herdei uma alma de pássaro

assim como uma paixão enorme

por este poleiro entre as estrelas

quarta-feira, outubro 04, 2006

Do tempo sem tempo


tragam-me orquídeas para colorir os dias e um perfume de África no lóbulo da orelha e peças de âmbar com insectos maravilha e um cometa com uma cauda de muitas gaivotas e uma mão cheia de pedras de chuva mas escondam na pele a carícia do vento azul porque ninguém acredita que um nome possa inventar um caminho sem retorno para a alma adormeço com a mágoa acesa de te saber longe o meu braço só te toca e não te envolve arrisco assim estar demasiado distante do centro do universo só oiço o marulhar dos teus antigos passos na relva na areia na calçada na encruzilhada das linhas da minha mão e escorres pelos lábios da serpente do tempo finjo a morte para não te ofender o sono esqueço-me de respirar para não embaciar os teus olhos de vitral e canto a vida como os seres de um só dia se nos encostássemos sustentaríamos o mundo à altura do peito então tu beijarias o hemisfério norte e eu traçaria a linha do equador na curvatura do teu ventre assusta-me só saber ler a primeira página do teu rosto e há quase uma eternidade te ouvir dizer as palavras que me sossegam amo o mistério da tua opacidade como amo os cisnes que voam da tua para a minha boca não sei se amanhã é o primeiro ou o último dos dias e por isso hoje aqui agora neste instante te ergo esta catedral de fulgurantes pérolas trazidas do âmago do tempo e deixarei que nas escadas de mármore escandalosamente impoluto corra um rio para que possas navegar na tua casa no teu mar de desejos como uma ave de prenúncios de delícia avisto já o relógio nas altas esferas solares mas é cedo demais para vestir o futuro pois ainda não descoloriram as orquídeas e não se dissipou o perfume na tua orelha.

sexta-feira, setembro 29, 2006

No princípio...


Adorava saber quanto custa uma palavra, dessas mais raras que a boca ainda não disse, e na sua insuspeitável leveza provocam sismos na alma e o estertor dos vulcões na língua. Soubesse eu onde mora essa palavra apocalíptica e atravessaria o deserto carregando as estrelas maiores só para a dizer uma vez e esquecê-la. Como deve ser extraordinário esse sabor de sílabas virgens a descer pelos lábios e a inquietar o universo. Uma palavra sem ângulos nem sombras suspeitas, redonda como as marés e a morte. Eu sei que ela existe, que se oculta na música dos dias que valem pelo entardecer. Pode confundir-se com o vibrato da harpa, mas é anterior ao dedilhado e à respiração dos pardais. Talvez se esconda no bolso das crianças que vão nascer, para uma palavra assim tudo é possível. Há quem treine as cordas vocais julgando-se eleito na espera, mas pode acontecer que ela não queira ser dita, que ela seja o que há de mais silencioso no silêncio ou, quem sabe, o efémero verbo que no início foi o princípio.

quinta-feira, agosto 10, 2006

A realidade segue dentro de momentos...


Está na hora de irmos a banhos. A fornalha dos dias convida a um retemperador banho no Atlântico. A natureza, tão contida em favorecimentos à nossa gente, foi generosa em pespegar-nos o azul imenso aqui mesmo à mão. Antes que recomece o frenesim da nova época de novelas, políticas, desportivas, culturais, educacionais e das propriamente ditas, que preenchem o pequeno sonho de quem não tem mais nada para sonhar, descansemos a espírito para voltarmos à vida em Setembro. Nessa altura, mais tostados pelo sol, mais repousados para as grandes tarefas invernais, arregaçaremos as mangas e conquistaremos o céu desde o lugar mais macio do sofá. Nessa altura o Hezbollah já terá gasto todos os mísseis estivais e Israel reposto o seu arsenal com material bélico de última geração. As fábricas de armamento não garantem a fiabilidade de material não usado num prazo de 12 meses, a garantia contra o não rebentamento dos rockects não pode sofrer extensões e, por isso, há que usá-los para iluminar as noites libanesas. As crianças e os velhos, e mesmo aqueles que no zénite da vida fizeram figuração de mortos, voltarão incólumes à vida. Os amigos da administração americana saldam em Agosto o que de melhor têm: o ódio a tudo o que não fala inglês e não reconhece a efígie da nota de dólar e, por mero acaso, in other god they trust. Em Setembro o petróleo estará pelas ruas da amargura, não há quem lhe queira pegar, haverá mesmo saldos do crude do mar do norte e a Noruega verá baixar perigosamente a conta das gasolineiras. É possível mesmo que rebente um escândalo e se consiga finalmente provar que o Irão não desenvolve nenhuma tecnologia nuclear, nem bombas de estalinho, mas todo aquele aparato não passa de um subreptícia forma de acrescentar água ao petróleo, como alguns aqui em em Portugal fazem, só que adicionando água ao leite. Cada um é subversivo com o que pode! Mas o mais certo é em Setembro o Irão já estar pacificado pelos falcões americanos e pelas pombas israelitas, estão-lhes cá como umas ganas...
Certeza apenas levo uma para férias: em Setembro é a época das vindímas e o vinho tinto ainda não dá para transfusões.
Se os senhores gajos que mandam no mundo resolvessem isto entre eles, assim num mano a mano, tipo: estou à tua espera logo à tardinha com um colares de 72, vê lá não me apareças com um reles colt de 38; se fosse assim, isto até tinha piada, mas não, como vampiros que são preferem sangue...
Até Setembro podíamos despedir estes tipos todos e começar de novo. Se nos livrámos das pragas de peste, será que não somos capazes agora de nos livrarmos de pragas de cretinice aguda?

sábado, julho 01, 2006

À Sra. Ministra da Educação


Exma. Senhora Ministra,

Espero, sinceramente, que se encontre bem de saúde, assim como toda a sua dedicada equipa.
Devo começar por lhe dizer que hesitei muito antes de lhe escrever porque não queria, de modo algum, distrai-la das suas superiores tarefas de moralização da actividade docente. Acontece, porém, que depois de muito reflectir conclui que só a Senhora Ministra me poderia valer e, assim sendo, vejo-me na contingência de partilhar consigo as minhas preocupações na augusta esperança de que me possa esclarecer e mostrar o quão infundado é este meu aperto de alma.
Eu gostaria muito de vir a ser um professor modelo, de conseguir anos a fio a avaliação de excelente, mas já ouvi alguns colegas meus, certamente invejosos, dizer que nem pense nisso porque eles também são excelentes (ou pelo menos vão tentar sê-lo...)e, portanto, temo muito que estratégias de baixo valor ético venham a ser utilizadas nesta competição que devia ser edificante e limpa. Se a Senhora Ministra tivesse meia hora para olhar os meus apontamentos veria que falo verdade.
Preocupa-me também aquela proposta dos 97% de assiduidade, sobretudo depois de ter falado com o Conselho Executivo e este ter recusado alugar-me uma salinha para morar em tempo de aulas. Eu que tenho uma predisposição natural para o stress temo que faça alguma loucura se ouvir o toque da campainha e entre mim e o portão da escola algum obstáculo me impedir a excelência. Já falei com a família mais chegada e está combinado, e na minha família ninguém falta às combinações, que ninguém pode morrer em tempo de aulas (abrimos uma excepção para as sextas-feiras porque o funeral pode ser sábado ou domingo). Já agora, como eu gosto de jogar limpo, também lhe digo que se me sentir com febre, com dores de etiologia diversa, com sintomas depressivos ou qualquer intoxicação imprevista, me atirarei sem dó nem piedade das escadas da escola abaixo para ser abrangido pelo item acidente de trabalho e não pôr, assim, em causa a minha avaliação excelente.
Gostaria muito que soubesse que apreciei imenso o lesto e nada burocrático processo de avaliação que propõe para os docentes. Percebi, ao contrário das mentes maldosas, que o único desígnio que a move é a qualidade do ensino e o combate ao insucesso e abandono escolar. Não vi nem um único indício de preocupações economicistas, quando poderia perfeitamente ter proposto que os professores se quotizassem para pagar o giz, a água e a luz que consomem. É evidente que se uma empresa só é viável se os empregados produzirem um incremento de riqueza, também uma escola deve produzir mais transições do que retenções. E se os alunos não quiserem estudar, coisa que só os bons professores sabem evitar, devemos ser severamente penalizados por não termos sabido escolher outra profissão onde a matéria-prima nos obedecesse cegamente. Temo profundamente que as retenções que não consigo transmutar em transições, apesar do mais denodado esforço, me venham a empurrar para o limbo da carreira docente. E tremo só de pensar que na mente de algum dos meus futuros alunos se insinue o pérfido cenário do abandono escolar. Se não for inconstitucional irei propor no início do ano lectivo prémios de produtividade do tipo: quem vier a 97% de aulas passará garantidamente com não menos do que 18 valores, quem vier a 80% descerá abruptamente para o 15 e 50% de presenças dará direito a nunca menos que 12. Aos alunos que se inscreverem e pagarem as propinas, mesmo que não possam vir, se eventualmente me puderem avaliar os respectivos encarregados de educação, estou a pensar seriamente no 10 (acho que o 11 seria um pouco exagerado!).
Achei muito bem pensada aquela proposta de exoneração para os professores que no período probatório obtenham regular, descansa-me imenso saber que alguém vela pela excelência logo na admissão à carreira. E quem obtiver regular na avaliação anual é muito bem feito que tenha que acrescentar um ano à permanência nesse escalão, não queremos ver a progressão na carreira contaminada por indivíduos de valor científico duvidoso ou viciados em absentismo.
Creia, muito sinceramente, que não só perdeu os professores para ganhar a opinião pública, como também ganhou o meu apreço pela coragem e desfaçatez com que nos maltrata.

Com elevada estima,

terça-feira, junho 06, 2006

Murmúrio das pedras




Imagino-te, antiquíssimo irmão, afagando meticulosamente as pedras. A geometria das estrelas nas noites em que o céu era um diamante multifacetado dizia-te onde as devias plantar. Desenhavas a luz e sombra labirintos de fantasia. Nos decibéis do vento aprendias a povoar o silêncio. Dedos graníticos apontavam o sol e o percurso da vida à morte. Deixaste um recado no coração das pedras, mas ninguém sabe ao certo que palavras querias que elas nos dissessem quando o passado e o presente se encontrassem.
Visitamos-te, antiquíssimo irmão, para ouvir no eco dos lugares a tua voz vinda do fundo do tempo. É que, embora ainda perscrutemos as mesmas estrelas, amemos ao mesmo luar, dancemos nos solstícios, desaprendemos de afagar as pedras para dialogar com a eternidade.

sábado, maio 13, 2006

Quando os olhamos nos olhos...


Quando os olhamos nos olhos, quando desvelamos através dos olhos o lugar que se oculta na sombra e onde pensamos estar o filão do sonho, o sopro do desejo, a força imparável de ser puxado do futuro, temos a espaços, numa intermitência incómoda, que ora nos convida a abrir o sorriso, ora nos sela de silêncio os lábios, indecisões sobre o abismo. Sobre a verdadeira cor do abismo, sobre o ângulo em que abre contra o horizonte, sobre as palavras que são a estreita vereda nessa proximidade intimista com o abismo, sobre a natureza mesma do abismo.
Eles são vinte, trinta, um cento... E quando os interrogo em mim, um a um, tento perceber o que se esconde de significativo em cada uma da múltiplas evasivas. Sei que há ali gritos, revoltas, socos no estômago, insultos sem endereço definido, acenos de paz diluídos na distância e uma dor persistente de crescer sem se saber para onde nem para quê.
Todos nascemos com um manual de sobrevivência incorporado, mas antes que o saibamos usar arriscamos o desnorte, a caminhada pelo deserto por uma miragem, a fragmentação que levará tempo e muito cuidado a colar peça por peça. E haverá sempre os que inábeis na tarefa de compor puzzles hão-de arrastar uma incompletude insuperável.
De sortilégio são os dias em que eles parecem mais exigentes e não aceitam que repetir seja uma actividade nobre. Nesses dias arriscam estar ali com um olhar arguto de implacável juiz e somos nós que vacilamos. E mesmo que saibamos muito desse saber que os livros foram deixando nas bibliotecas do tempo, nunca saberemos o suficiente para ler o que não é do reino imediato da luz. De todas as raposas para todos os principezinhos: «só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.»

quinta-feira, maio 11, 2006

suspendam-se as pontes...


De tempos a tempos a virtude inflamada de não ter mais nada que fazer ou pensar senão nas longas cartas que não escrevi quando era tempo de dizer assim a alma como os arbustos estivais vai definhando há uma fina poalha que desce sobre os ombros e quase nos empurra para o centro solitário de onde é um sacrifício pungente sair para a luz diária distâncias que se somam como se a vida tivesse um contrato aritmético a cumprir mas o que na verdade se passa é que vamos consumindo o coração pelas esquinas desencontradas que não escondem o vento nem os olhos que apesar de em baixo voo ainda assim perscrutam uma suposta fuga de longe em longe pisamos as flores por tédio por mero esquecimento da beleza que há quando as coisas se dizem em plenitude afirmação viril contra hesitações torpes nada fala a voz dos caminhos que não percorremos talvez a saudade de ter perdido tempo de não ter sabido dizer com voz plena que à distância o mundo se curva para nos facilitar o andar saberemos nós qual a maneira mais apropriada de amarrar o sentimento esse inconstante guardião de nós aos outros não nós pouco sabemos das encruzilhadas que nos esperavam se o rumo fosse aquele que apropriadamente se oferecia seres de inconstantes que pelas noites múltiplas da escolha se aquietam esperando que do pouco fazer nasça um universo talhado para nós quanto de inconsciência há em tudo o que nos diz respeito mas ainda assim podemos respirar o ar dos montes e beber o verde como um manto que nos agasalhará muito para além de qualquer frio.

quinta-feira, abril 27, 2006

Da letargia e outras drogas...


talvez vá sendo tempo de avivar a voz, de esticar os dedos que sem uso encarquilham e voltar ao diálogo. quando se perde a vontade de dizer segue-se, quase sempre, como uma espécie de fechado determinismo, a vontade de escutar. resta então o silêncio, os pássaros que são o nosso desassossego, pousam e já não cantam no entardecer que chama a lua. é verdade que, de tempos a tempos, é preciso limar as palavras, apaladar o gosto dos verbos, afiar os adjectivos e encher as mãos de interjeições, mas não convém parar muito tempo, o corpo habitua-se ao descanso letárgico com uma facilidade assustadora e, quando damos por isso, temos a vista envidraçada com frondosas teias que nem as mãos mais predispostas a aracnídeas tarefas são capazes de desfiar. não fazer nada, contemplar e pensar que é tudo tão distante e tão destituído de interesse é uma espécie de narcótico que aparentando elevar-nos nos coloca na mais profunda indiferença como prisioneiros de uma miopia que afecta muito para além dos olhos. esbracejar é preciso, mesmo que seja só acenar ao vento. quem nos olha de longe, mesmo que nunca nos olhe no raiar estrelar da retina, pensar-nos-á muito mais vivos do que nós sabemos estar. enganar o inimigo é uma das melhores estratégias de sobrevivência, mesmo se o inimigo tem o nosso nome e respira pela nossa boca.

segunda-feira, abril 03, 2006

De quantos nomes se faz a infância?


De quantos nomes se faz a infância? E quantos papagaios de papel são precisos para ter direito a um céu exclusivo? E se me banhar até à exaustão será que o mar me confundirá com os peixes? E se os meus olhos souberem ser minuciosos de forma excessiva ainda me faltará muito para ser águia? E se no coração tiver as cores todas poderão as mãos augurar a delícia do pintor? E se amar muito um lugar poderei com paciência ver-me crescer raízes? E quantas palavras na boca farão de mim um poeta? E quantas vezes é preciso afagar a tua pele para atear a paixão? E quantos amigos é preciso ter tido para não recear a morte? E se chorar muito será que me dissipo como as nuvens? E será que este absoluto fascínio pelos teus seios fará de mim alpinista? E quantos sonhos preciso somar para merecer a realidade? E quantas gotas de orvalho matam esta sede oceânica? E se escrever o teu nome no vento poderei esperar que regresses como as andorinhas?


El ladron de la infancia
José María Córdoba

sexta-feira, março 10, 2006

A unidade do múltiplo


De certo modo a vida é um jogo de azar. Há os que a jogam compulsivamente, e os outros que aguardam calmamente que lhe calhem os trunfos para ir a jogo. Há os que perdem, porque só sabem perder, e os outros que, não arriscando um milímetro, só jogam pela certa.
Mas a grande questão é a de saber o que há que fazer com o jogo que temos em mãos, isto é, que fazer desta vida que é a nossa e que ninguém pode jogar em nosso lugar? Se aceitamos que tudo o que acontece é fruto do acaso, que não há necessidade absolutamente nenhuma em nada do que acontece, mas um puro jogo de encontros e desencontros, então pouco nos cabe na responsabilidade do desenlace das sucessivas jogadas. Mas se, ao invés, aceitamos que baralhar a vida é a nossa tarefa, e que as voltas que damos são fruto da nossa escolha, então as coisas tornam-se mais interessantes, mais complicadas, e jogar é um risco calculado.
Haverá sempre lugar para o imponderável, para o acidente, para o inopinado, mas entre o aceitar essa margem de imprevisibilidade e colocar tudo no lado do imprevisível há uma diferença decisiva, como seja o aceitar a desordem absoluta ou o exigir uma ordem resultante do nosso empenhamento.
Alguns de nós gostam de complicar as coisas. Sempre haverá os que gostam, os que inventam, jogos difíceis, aporias para matar o tempo, e outros que esperam candidamente que o tempo se encarregue de os matar. Depois há duas dificuldades, que no fundo são variações de um tema, a relação que encetamos connosco e as relações que estabelecemos com os outros. Se somos tolerantes, podemos sê-lo connosco e não sê-lo com os outros, ou podemos inverter as coisas e estabelecer uma relação com os outros oposta daquela que usualmente usamos no trato próprio. Depois ainda há as regras que interiorizamos e que padronizam a nossa atitude. Bastas vezes estas regras são geradoras de conflitos. Primeiro internos e também com alguma frequência externos. Depois, ainda, há os que jogam limpo e os que viciam, mas no fundo todos pretendem sair vencedores. Há, por fim, uma franja de jogadores que não jogam com o baralho todo e que tornam o jogo ainda mais difícil, por vezes, de todo incompreensível.
Uma coisa que sempre me fascinou, que sempre me atormentou, e que permanece para mim um grande mistério, é esta de sermos milhões de individualidades, com um cérebro próprio e, por conseguinte, com um mundo interior autónomo, e ainda assim sermos capazes de lançar pontes através da comunicação que nos torna uma imensa rede de troca de informação. Não seremos nós todos apenas periféricos de uma só consciência? Perceber os outros não significa uma identidade necessária? Ou será que a única coisa que nos aproxima é a utilização do mesmo software, isto é, uma mesma linguagem operativa?
Aquilo que penso, aquilo que sinto, aquilo que desejo, será aquilo que o outro pensa, aquilo que o outro sente, aquilo que o outro deseja? E as articulações que no meu cérebro se estabelecem, serão as mesmas articulações que nos outros cérebros se estabelecem? Será que não passamos de máquinas biológicas que possuem um mesmo modus operandi, mas que se recusam aceitar essa identidade porque a originalidade é algo que julgamos valorizar-nos sobremaneira?
Na amizade, no amor, aceitamos a comunhão, a identidade de princípios, mas na inimizade, no ódio, recusamos terminantemente qualquer proximidade. Mais, quando nos embrenhamos no conflito recusamos mesmo as ideias do outro, não pelas ideias elas mesmas, mas por serem ideias do outro, e só por isso. O que significa que discutimos mais com argumentos ad hominem do que a partir de fundamentos estritamente racionais.
Sartre dizia que as relações com os outros são sempre segundo uma dicotomia Sado-masoquista, ou escravizamos ou somos escravos, ou ordenamos ou obedecemos, ou sofremos ou fazemos sofrer, ou aniquilamos ou somos aniquilados. E, embora, um destes pólos possa ser prevalecente em cada uma das nossas relações com os outros, elas podem no interior da mesma relação sofrer deslocações e inversões, e são mesmo esta inversões que podem tornar possível uma relação, fora da esfera do patológico, bem entendido.
E se tudo isto não passar de estratégias de sobrevivência, como Alberoni propõe na esteira da sociobiologia? Se a natureza íntima do nosso ser não se interessar por nenhuma outra tarefa que não seja assegurar, a qualquer custo, a sobrevivência dos nossos genes? Não seremos nós programados para que a grande consciência sobreviva a custo da perenidade das consciências partilhadas? Não será esta partilha, esta participação da racionalidade, uma habilidade semelhante há que hoje se utiliza através da Internet que passa por colocar milhões de pequenos Pc’s a efectuar o trabalho que um descomunal computador por si só não poderia fazer? Se o tempo é geométrico, então ele é orientado e assim sendo em simultâneo muitos farão mais, muito mais do que um só, por maior que este seja.
Seria interessante haver respostas. Seria repousante sabermos qual o enredo de que fazemos parte. Mas o segredo acaba por ser o grande tónico que nos torna activos. Desvendar, ainda que os pequenos pormenores, da nossa tarefa de estar vivos é o verdadeiro desafio que nos anima. E esta tarefa é multifacetada, é plena de hiatos, que a nossa habilidade para compor puzzles ainda não foi, não é, capaz de solucionar. A felicidade que é uma sorte de doce produzido e consumido no interior dá uma certa cor à existência, e surge inesperadamente como resultado de uma espécie de suspensão da pena que significa para muitos estar vivo. Ser ou estar feliz é um estado intermitente e se a morte é o tributo que há a pagar ao tempo e à vida, nas palavras de Anaximandro, então quando se está feliz é uma espécie de tributo a si próprio, é uma suspensão da erosão do tempo. É um logro para o qual só a muita experiência nos torna aptos.
Nós, estas máquinas com sentimentos no lugar das engrenagens, temos uma apetência natural para tornar o simples difícil, por isso não nos basta ser, o ser é próprio das coisas, dos animais, das plantas, é preciso projectarmo-nos no dever-ser, num universo de ideações em que nos digladiamos porque a grande consciência, essa súmula das pequenas consciências, pretende assim exercitar estes dispersos músculos pensantes. O que é que poderemos fazer para universalizar esse dever-ser? Será que a proposta kantiana era uma boa proposta? Será que retirar dessas reflexões as nossas motivações, sensíveis ou intelectuais, nos poderá conduzir a algum lado? Será que nos movemos sem motivações, e pensar é ainda e sempre uma forma de movimento, porque como os nossos cérebros que se dedicam às coisas da física já explicaram a ausência de movimento é outro modo de nomear a morte, ou é possível formalizar uma ética (Espinosa talvez pensasse que sim) retirando qualquer vestígio da presença do desejo, sobre as sua mais diversas formas?
Aceito a contingência inerente à minha condição de existente. E não me ofende, não me belisca minimamente a dignidade, saber que podia muito bem não estar aqui a olhar para um écran a tentar digitar palavras que arrastam ideias que me inquietam. Mas uma vez que aqui estou, e com a mesma dependência da felicidade que um drogado da sua droga, procuro desvelar os lugares secretos onde ela se possa ocultar. Parte dela tenho-a aqui a dois passos, nos filhos que me olham com uns olhos mais fundos que qualquer céu, e na mulher que de tempos a tempos me deixa provar a poção de existir respirando por outra boca e fundindo-me noutro corpo. É pouco, dir-me-ão. Mas de muita coisa pouca se faz uma vida, não conheço outro modo.
Tenho amigos, aqueles com que jogo de olhos fechados, porque sei que nunca farão batota propositadamente. Tenho muita gente que conheço e porque não entendo muito bem como baralham as cartas não consigo a intimidade, mas respeito essa distância e não os convido para jogar sem luz.
A vida às vezes é ingrata, mas resta saber se se pode culpar a vida ou os que a vivem, porque ela é apenas o palco, e este nada pode fazer para ajudar os actores que desistiram de representar antes de tempo, pouco importa a solenidade das suas razões.
Pensar corre o risco de ser uma actividade estéril, porque pode levar à apatia em vez de conduzir à acção. Mas o que poderei eu fazer senão exercitar este órgão que me incomoda quando não o convido ao diálogo, e que logo me insulta, se insurge pelo meu desprendimento? Quem sabe se um dia, sem querer, por mero acaso, por um conjunto de coincidências, não poderemos descobrir e confirmar a verdade do poeta: quem sabe se não seremos todos personagens de um sonho que alguém sonhou. Ou direi eu: quem sabe se todos não seremos apenas um, que por maleita esquizóide, se julga muitos e sofre e goza, e volta a sofrer e a gozar, muito com isso.
Haverá cura, ou resposta?

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Da saudade


Ao meu pai,

Quando a grande noite se avizinha, ave de insondáveis lugares, aquilo que nos resta é guardar o brilho, o toque, o som amável no único lugar inapagável, a memória. Procuramos nestes dias de olhos no horizonte perscrutar um sentido, uma fórmula que decifre o que não pode ser dito pelas palavras. O silêncio desce cumprindo o inexorável. Enquanto alguém saiba que aqui estiveste, não terás de facto partido. E há uns que sabem mais do que outros porque mais próximo respiraram a mesma casa, a mesma morada de afectos. O tempo gasta-nos, passa sobre a nossa pele e enruga o olhar, amordaça a voz e convida-nos a mudar de substância. Nada há que nos espere, nada há que nos redima, nada há que nos substitua, apenas ficaremos para sempre presentes nos que nos amaram. O inevitável não é indolor por ser inevitável, apenas ocorre como a própria estrutura da realidade. As coisas são o que são, a vida filtra-se a cada novo ocaso, a ausência de cor é um repouso mais prolongado. É esta a história dos homens, esta será sempre a história dos homens, aceitar não é uma rendição. É saber que o Inverno pode tardar mas nada há que o impeça de se cumprir. Por isso todo o tempo é pouco para amar a vida e amar os que nos ensinaram a respirar. É um até logo, nunca um adeus!

24/02/2005/6

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Para quando a liberdade?


«O medo de ser livre provoca o orgulho de ser escravo.»
Rudolf Rocker

Porque será que é mais fácil acreditar nos deuses do que acreditar nos homens?
Coloco amiúde esta questão a mim mesmo e enquanto procuro a resposta, uma das muitas resposta possíveis, sou levado a pensar que qualquer que ela seja nunca será definitiva e como em tantas outras áreas da existência humana ela radicará sempre na escolha que cada um fizer de si próprio.
Kant disse-o de forma muito clara: o homem está condenado a colocar questões às quais nunca será capaz de responder. É esse o sortilégio e o profundo abismo das questões metafísicas. Mas, em simultâneo, será também este universo de questões aquele que traçará a fronteira entre a animalidade e a humanidade.
Protágoras, segundo citação de Diógenes Laércio, terá dito: com respeito aos deuses não posso conhecer nem se existem nem se não existem, nem qual a sua natureza, porque se opõe a este conhecimento muitas coisas: a obscuridade do problema e a brevidade da vida humana[1]. Protágoras parece-me um homem sensato. Mas Protágoras tem sobre si o anátema de ter sido sofista em contraponto aos filósofos. Será isto motivo para não ter razão?
Desde os cultos primevos até às grandes encenações dos cultos monoteístas contemporâneos não consigo divisar diferenças essenciais. A não ser, talvez, a perda de autenticidade. Parece-me infinitamente mais sensato adorar o Sol, a água, ou a natureza na sua pujante diversidade, do que uma entidade antropomorfizada que de tão abstracta só existe como conceito.
A célebre afirmação de Tertuliano Credo quia absurdum (Creio porque é absurdo), tem servido ao longo do tempo como defesa da fé e da crença religiosa contra a exigência da compreensão racional. O preceito fez escola e hoje, no início do século XXI, é possível ouvir quem defenda que este século será religioso ou não será...
Admiro a religiosidade dos chips de sílica, do ADN, dos foguetões, das ressonâncias magnéticas, dos antibióticos, dos supercondutores, da física quântica, dos movimentos globais contra a fome e pela justiça social, da químio e da rádio terapia, da clonagem, da fecundação in vitro; mas não consigo admirar a religiosidade dos que caminham de joelhos, dos que se deixam crucificar, dos que apedrejam o diabo, dos que se auto vergastam, dos que adoram ícones, dos que promovem alucinados em vez de os tratar, dos que contratualizam uma promessa, dos que matam em nomes do seu deus, dos que têm um lugar exclusivo no céu, dos que são o guardiães da verdade revelada, dos que promovem o sacrifício a expensas da salvação, dos que sentam o corpo sempre ao lado dos poderosos e dizem ter o espírito ao lado dos indigentes.
Deixou de ser politicamente correcto afirmar que a religião é o ópio do povo, mas, talvez, dizer que é o xanax, que é o Uísque para as dores do espírito, não seja tão desajustado. O absurdo é haver quem acredite no absurdo e mais ainda quem promova o absurdo como forma privilegiada de dar sentido à existência. O absurdo é haver quem desavergonhadamente promova a ignorância como forma de acesso ao reino dos céus. O absurdo é projectar no fundo da caverna uma ficção barata e querer manter aí os fiéis prisioneiros porque the show must go on.
Talvez o século XVIII já tenha dado a resposta mas, claro, trata-se de uma resposta politicamente incorrecta : "L'humanité ne sera heureuse que lorsque le dernier roi sera étranglé avec les boyaux du dernier prêtre."
Curé Meslier, rationaliste, athée et révolutionnaire, mort en 1729






[1] Protagoras, Fragmentos y Testimonios, Ed. Aguilar, p. 109.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Valerá a pena uivar?



As folhas, timidamente, começam a aflorar nos ramos. Os pequenos nódulos caprichosamente deixam que o verde volte a respirar e Perséfone renasce para um novo ciclo. Mas o que sabemos nós da mudança? Se o observador se confunde com o observado é impossível ver claro. Só a distância nos permite ver o que há para lá do olhar. Os rios heraclitianos correm mercê de um inusitado degelo cada vez mais velozes e assim nem na primeira vez nos banhamos nas mesmas águas. Vivemos hoje num permanente vórtice e já não há lugar para olhar debruçado no sossego. Entre o breve e pré-histórico ontem e o amanhã fulgurante há uma ponte virtualmente suspensa sobre o absurdo. A estonteante velocidade a que se transfiguram as nossas vidas embota-nos o entendimento e a realidade é um lugar desfocado de instantâneos desconexos. Olhamos para trás perscrutando o caminho que até aqui nos conduziu, mas quando damos conta já não estamos aqui e mais um hiato se somou a tantos outros que torna a existência uma intermitência que não há forma de suturar. Escravos das coisas que nos libertam, criadores subjugados pelas criaturas, alienados pelo excesso e pelo supérfluo, já só lemos às escondidas os poemas antigos de quando éramos humanos, demasiadamente humanos. Temos o Universo na ponta do indicador mas saberemos nós transformar isso em alimento da felicidade? Neste canto do mundo onde se sofre penosamente de abundância as crianças já não brincam: digitam brincadeiras. As crianças não sabem saltar de uma pedra para a outra sem a ajuda de um joystick e quando temos saudades dos amigos beijamos a webcam. Decididamente sou um velho do Restelo, ou melhor, um anquilosado Windows XP em tumultuosas navegações interiores. Tenho que fazer urgentemente um upgrade à alma antes que os vírus ma bloqueiem de vez...

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

"Senhor do tempo"


Será que os que não têm relógio, a não ser o da alma, também celebram datas? Se esquecêssemos o relógio mecânico, se atendêssemos só ao relógio solar, ou à clepsidra, poderíamos furtar algum tempo ao tempo. Assim, não envelheceríamos nos dias em que o Sol se esconde ou, em alternativa, nos dias de estio em que a chuva não nos visita. Em pequeno desmontava e montava um velho relógio como forma de iludir a espera. Nessa altura eu era o “senhor do tempo”. Rodava perto da vertigem os ponteiros, e, desse modo, os minutos e as horas comprimiam-se ou distendiam-se a meu belo prazer. Viajava no mostrador como quem viaja pela vida, com a vantagem de poder parar e regressar ao início se a história começasse a ganhar contornos que me desagradassem. Nesse tempo era-me permitido retirar os ponteiros e com esse gesto de assombrosa rebeldia criar a eternidade. Aproveitava então para sonhar sem estar sujeito ao ciclo dos despertares sucessivos. Viajava pelas quatro paredes do quarto como numa tela panorâmica e os cavalos de vento saltavam as arestas e perdiam-se no tecto como as constelações se perdem no firmamento. Voltava a colocar os ponteiros porque me apetecia voltar a ter fome e permitir que a minha mãe regressasse. Eu sabia que ela não regressava enquanto os ponteiros não voltassem ao mostrador. Aliás, nessa altura só acontecia o que eu quisesse que acontecesse, porque eu era o “senhor do tempo” e o “senhor do tempo” é o único que tem poder para criar realidades ou, magnanimemente, permitir que elas se sucedam no seu ritmo natural. Infelizmente esse relógio perdeu-se algures na minha meninice, daí para cá tenho envelhecido e deixei de ser o “senhor do tempo”. Se alguém souber do meu relógio (isto se não tiver aprendido a usá-lo para sonhar alheio ao tempo) agradecia que mo enviasse. É fácil reconhecê-lo! Se olharem bem no mostrador as minhas impressões digitais cavaram um círculo exacto e o soar das horas confunde-se com o soar do meu coração, a corda é a mesma e acertámo-nos numa cumplicidade que por ser fora do tempo é mais duradoira que a própria eternidade.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Do tempo divergente


Há vinte anos - é tanto tempo vinte anos e passaram como um sopro -, quando comecei a receitar manuais de filosofia como suplemento vitamínico de grandes ideias, os pacientes pareciam-me menos pacientes. Parecia haver um brilhozinho nos olhos que augurava uma pujante saúde mental ou, pelo menos, um desejo de transformar o futuro. Hoje, são os filhos destes que me olham com um olhar vago, um mortiço incómodo resistente a qualquer desafio. Pergunto-me se não terei sido eu que envelheci e perdi a acuidade de falcão que tinha então no olhar, e, por isso, vejo mal e, logo, entendo mal. Digo que são cada vez mais imaturos, mais conformados, mais incapazes de tentar a sorte de Ícaro, ou serão os caminhos deles cada vez mais divergentes do meu e por isso nos afastamos inexoravelmente? Eles caminhar, caminham. Mas talvez me falte o fôlego para lhes seguir no encalço e, por isso, justifico-me dizendo que não sabem nem por onde nem para onde vão? O tempo não aplana só as montanhas, também incita a outros voos, alimenta outros sonhos...
Tenho que levar as asas e os olhos à oficina!!!

Pensar o olhar

O Alberto Caeiro dizia que “pensar é estar doente dos olhos”. Talvez ele tivesse razão, mas ouvi ontem o Miguel Sousa Tavares dizer que: “o olhar não nos engana, que o olhar não mente, só o olhar capta a verdade” e, mesmo que quisesse seguir o preceito pessoano, não resisti a esta necessidade de pensar o olhar, ou olhar o pensar, já não sei bem o que vê e o que é visto.
Olhar a curvatura das ondas riscadas pelas asas das gaivotas é bem mais interessante que medir-lhes a altura e calcular a força com que debruam o areal. Olhar o recorte das nuvens e ver nelas os animais da infância é muito mais aliciante do que saber se são nimbos, estratos ou cirros. Olhar as heras que num amplexo vindo do fundo do tempo estreitam as árvores é bastante mais sedutor do que descobrir se são parasitas ou infestantes. Olhar a curvatura perfeita do sorriso de uma mulher é bastante mais agradável do que saber quais os músculos que foram convocados para tal gesto.
Mas não será que olhamos com o corpo todo? Que prazer será esse que se desconhece como prazer? Um poema que não percebo não me pode dar prazer, assim como uma pintura, uma fotografia que me agarra os olhos, agarra-os por dentro, quando uma luz interior se acende para iluminar de sentido o meu mundo.
Pensar não pode ser estar doente dos olhos! Pensar é ver e ver para além do olhar. Alguém disse que a realidade gosta de se esconder e assim sendo o pensamento, a imaginação é aquilo que nos permite levantar a pele do real e ver o coração das coisas. Olho para este amontoado de letras e vejo o que penso, ou será que são elas que me pensam e há ainda pouca luz aqui para pensar o que vejo de forma clara? Felizes dos que pensam com a paleta do arco-íris!

domingo, fevereiro 05, 2006

Da intolerância e do tempo


Hoje incendeiam-se embaixadas a troco de uma caricatura, ontem faziam-se cruzadas para matar os infiéis.
Hoje fazem-se explodir mártires a troco de uma causa, ontem uma causa colocava na fogueira mátires da intolerância.
Será que é o mesmo ódio que ontem e hoje nos alimenta? Ou será que apenas se cumpre a lei de Talião, do olho por olho, dente por dente?
Se ao invés de querermos apagar a memória a usássemos para iluminar o futuro, talvez pudéssemos caminhar juntos sem pedras na mão.
Será que ninguém se lembra das avisadas palavras de Voltaire: "nunca respondas a uma palavra de raiva com outra palavra de raiva, é a segunda palavra que faz a briga!"
Estaremos nós condenados ao vatícinio de Hobbes: homo homini lupus?
E eu que ambicionava um mundo melhor para os meus filhos e todos os que com eles hão-de partilhar o futuro, vejo agora como a ignorância e a ingenuidade são das poucas razões para ainda acreditarmos que dias melhores virão.
Sonhar é cada vez mais estreito e insuficiente e por isso, também, percebo melhor a cada dia que passa o presciente aviso de Aristóteles: "quando a maioria dos cidadãos se deixar de interessar e virar as costas aos assuntos da cidade, serão os crápulas e os indivíduos sem escrúpulos que se sentarão nas cadeiras do poder." Antes não tivesses razão velho filósofo...

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Lisboa em noite de luz...


A grande cidade adormece como uma serpente de luz. A chuva lava-lhe de mansinho o rosto. É Fevereiro ainda nos primeiros passos. O rio traz notícias líquidas e cheiros verdes da lezíria. Visito as estrelas que me riscam de prata os olhos e nada entendo dos colapsos das anãs brancas. Mas também nada percebo do ter que haver fome e homens que semeiam balas nos campos que foram de trigo. Às vezes apetecia-me morrer só por um bocadinho, como dizia o José Gomes Ferreira, para acordar depois e acreditar que nunca vivera em tempos de ódio. Tenho livros que me olham com lombadas de ingénua desconfiança e um relógio que derrama segundos que nunca foram primeiros. Gostar, gostava mesmo era de saber se os homens são aves cansadas ou cornucópias de uma só cor. Entretanto, a noite inscreve o sono no meu caminho e eu suspendo o pensar até que o Sol de novo me aqueça a alma. Talvez ainda venha a ser capaz de dizer porque arrasto um nome e amo os que amo.

À Martocas















Uma grande "miadela" de todos os que te amam!

terça-feira, janeiro 31, 2006

Mundo Cão


«Uma das principais marcas de comida para cão da Nova Zelândia ofereceu 42 toneladas de alimento para animais para o Quénia, onde a fome está a vitimar milhões de crianças. A notícia foi avançada pelo jornal Nation, que dá conta também da recusa do governo de Nairobi em receber a doação.»
in Diário Digital, 31/01/06

Se dúvidas houvesse de que vivemos num mundo cão, esta notícia, dando conta da grandeza da alma humana, ilustra de forma inequívoca a qualidade das relações humanas que o século XXI se propõe estabelecer.

Chocada com a reacção do governo de Nairobi, «A proprietária e fundadora da empresa Mighty Mix, Christine Drummond, conhecida na Nova Zelândia pelos biscoitos para cão que fabrica, já respondeu. De acordo com a responsável, o alimento em causa é muito nutriente, tem um sabor agradável, e a própria Drummond come os biscoitos todas as manhãs».in Diário Digital, 31/01/06

A senhora Christine Drummond pode seguir os preceitos dietéticos que muito bem entender, pode mesmo comer bosta de cavalo se isso lhe aprouver, mas querer partilhar os seus vícios privados de abastança com quem morre à fome talvez seja um pouco excessivo...

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Propriedade



Sei que nada me é pertencente
Além do livre pensamento
Que da alma me quer brotar,
E cada amigável momento
Que um destino bem-querente
A fundo me deixa gozar.

Goethe