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segunda-feira, outubro 30, 2006

Navegações interiores


Podia perfeitamente ser um marinheiro, daqueles clássicos com camisola às riscas e sacola desbotada às costas. Talvez trouxesse um chapéu à Corto Maltese e a memória cheia como uma maré viva. Havia de se lembrar das mulheres que nas tascas dos portos têm o olhar lascivo reflectido nos copos sempre vazios e amam brevemente entrecortando a respiração. Possivelmente, no rosto, num braço ou fundo no peito, teria uma cicatriz a marcar a dureza que acaba as conversas que falam com suspeita da honra. O caminhar teria que ser ondulante para tornar evidentes as longas travessias dos oceanos e teria no bolso mais próximo do coração uma fotografia sépia de alguém que quase já esquecera o nome. Teria certamente a voz rouca enrolada em tempestades e acenderia cigarros em cigarros para estar rodeado de um perpétuo nevoeiro lugar onde começam todas as aventuras. As mãos haviam de ser rudes como as amarras que mantém o barco fundeado incólume aos recifes que o reclamam com gritos alterosos de espuma. Perder-se-ia numa pensão barata com cheiro a salitre e com janelas incompetentes para emudecer a voz do mar. Havia de olhar a sua vida por uma bússola que nunca soubera apontar o caminho da felicidade, mas apenas a imperativa necessidade de zarpar sempre para os lados em que o Sol é maior. Podia, perfeitamente, ser um marinheiro, ou qualquer um de nós, navegando os dias roubados ao oceano do tempo.

sexta-feira, outubro 27, 2006

de onde vêm as estrelas?


para os teus lados sopra a nuvem branca essa máquina de endoidecer os que amam as cores com nomes separam-se as pétalas dos lábios para adormecer numa cama dividida entre a água e a areia e ouvem-se os bichos da espera tecer casulos no teu corpo doce como as noites de luar absoluto
para os teus lados desaguam os rios de fogo e voam os pássaros de asas ambiciosas para quem o infinito é coisa ridícula nada se compara ao teu braço com hastes de fumo verde e ao teu torso polvilhado de rosáceas hexagonais que perfumado uma só vez pela primavera decisiva traz todos os poetas inebriados pela memória dos cheiros
para os teus lados irradiam todas as auroras desde o início dos tempos e há mesmo quem diga que as estrelas são sinais que um dia te desceram do corpo até ao céu dos homens

quinta-feira, outubro 05, 2006



herdei uma alma de pássaro

assim como uma paixão enorme

por este poleiro entre as estrelas

quarta-feira, outubro 04, 2006

Do tempo sem tempo


tragam-me orquídeas para colorir os dias e um perfume de África no lóbulo da orelha e peças de âmbar com insectos maravilha e um cometa com uma cauda de muitas gaivotas e uma mão cheia de pedras de chuva mas escondam na pele a carícia do vento azul porque ninguém acredita que um nome possa inventar um caminho sem retorno para a alma adormeço com a mágoa acesa de te saber longe o meu braço só te toca e não te envolve arrisco assim estar demasiado distante do centro do universo só oiço o marulhar dos teus antigos passos na relva na areia na calçada na encruzilhada das linhas da minha mão e escorres pelos lábios da serpente do tempo finjo a morte para não te ofender o sono esqueço-me de respirar para não embaciar os teus olhos de vitral e canto a vida como os seres de um só dia se nos encostássemos sustentaríamos o mundo à altura do peito então tu beijarias o hemisfério norte e eu traçaria a linha do equador na curvatura do teu ventre assusta-me só saber ler a primeira página do teu rosto e há quase uma eternidade te ouvir dizer as palavras que me sossegam amo o mistério da tua opacidade como amo os cisnes que voam da tua para a minha boca não sei se amanhã é o primeiro ou o último dos dias e por isso hoje aqui agora neste instante te ergo esta catedral de fulgurantes pérolas trazidas do âmago do tempo e deixarei que nas escadas de mármore escandalosamente impoluto corra um rio para que possas navegar na tua casa no teu mar de desejos como uma ave de prenúncios de delícia avisto já o relógio nas altas esferas solares mas é cedo demais para vestir o futuro pois ainda não descoloriram as orquídeas e não se dissipou o perfume na tua orelha.