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terça-feira, setembro 04, 2012

Avieiros II

No rio morre-se menos. Só esta vantagem já poderia justificar a mudança, mas também as terras mais próximas e acolhedoras deixam-se domar pela altura em que a fertilidade as impele a serem recetivas à semente.
Ao que soube quase todos, senão todos, os homens do rio foram, são, ou ainda hão de vir a ser homens divididos entre marés e sementeiras. A pobreza das águas não dava para sustentar todo o ano as bocas, vestir os corpos e habitar uma casa. Em tempos em que a necessidade era mais comum e ofensiva, a vergonha não deixava que este homens e mulheres vivessem noutros lugares e com outros diferentes da sua mesma sorte. Assim cresceram ao longo das margens, desse rio bilingue, aglomerados flutuantes de vidas, histórias que hoje só têm registo na memória dos que já não têm memória e nas ruínas das pequenas casas longe do chão como as cegonhas e dessas outras simulacros na proa das bateiras. Apodrecem em conjunto as casas, que o não foram verdadeiramente, e os barcos de um azul cada vez mais impercetível.
Ainda há quem adormeça ouvindo as pedras saltitando no virar das marés, ainda há quem sonhe com redes repletas de sável e uma festa de escamas reluzentes nas cestas e sobretudo nos olhos, ainda há quem cheire os ventos de tempestade e adormeça entre rezas para nunca se afogar numa cama e na velhice, porque uma morte feliz é quando a maré vira e a água deixa sulcos, como se fosse um arado, na areia das margens.
 

Avieiros I



Ao longo do Tejo, bordejando as águas, por entre salgueiros, choupos e alguns ulmeiros, vive gente que sabe de cor todas as cores de que ele é capaz, que tem um mapa absolutamente fiel das suas correntes mas que, acima de tudo, o respeita como se costuma respeitar o que nos alimenta e, por isso, nos mantém vivos.
Aos poucos, ouvindo as suas histórias, curtas de palavras porque não foram feitos para historiar mas para viver, comecei a entender como podem os irmãos só o serem porque filhos de um destino comum. Assim acontece com estes homens e mulheres que desceram ao sabor da corrente esperando encontrar uma praia, um meandro, um baixio onde fosse possível começar de raiz a viver.
Já se passaram algumas gerações, em certos casos, e noutros apenas uma medeia o passado e o presente. E porque o mar em mediana altercação é tão perigoso como um rio que engrossado tudo arrasta até à foz, muitas famílias deixaram a areia ou o pedregoso das falésias para virem na sombra do rio assentar ferro e entre a oscilação longa das marés reiniciar a vida.
Têm o corpo retorcido como se tudo neles fosse um reflexo do próprio rio rasgando curvas nas margens, descendo calmamente planícies ou pulando para fazer espuma nas fragas negras e velhas de mais para terem um tempo calendarizável.