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sábado, dezembro 27, 2014

borboletas em vez de coelhos

De tão longe chegam os rumores que ainda os não traduzi
Mas sei que são poucas as palavras que valham a pena repetir
Não houve tempo para puxar o lustro das paredes e fazer janelas
Nem quem quisesse esse trabalho por dois dedos de conversa
E tu sem vires por mais que eu olhasse a estrada antes de curvar
Temi que chegassem primeiro as estrelas e o uivo dos cães
Nada me comove mais que um luar adornado de cães ao longe
Em pequeno esse uivo era mais inteiro e dava-o aos lobos
Tinha uma janela especial por onde via se chegavas e onde surpreendia os lobos
Hoje não sei o que foi feito dessa janela nem dos lobos cinzentos
Ficou-me uma memória quase tão insegura como a água sem margens
E não sei ao certo se lastimo ou apenas digo o que aconteceu sem inventar
Continuas a não chegar apesar da espera inquieta
E tu sabes como eu me inquieto com as cores, os sons altos e as margaridas de maio
Saberás agora que tu não estares e deveres estar também me inquieta
É verdade, quando crescemos outras coisas se somam às que nos inquietam
Se chove demais ou o estio é prolongado ou a senhora de cima morreu sem avisar
Tudo isso começa a inquietar-nos e a criar modelações nos dias de calmaria
Tu sabes, tu conheces-me, para não ter que descrever tudo ao pormenor
Sabes quando eu adormeço porque não quero que a conversa se prolongue
Sabes das minhas técnicas de ilusão e sabes como a magia é um dos meus refúgios
Sendo mais barato faço aparecer borboletas em vez de coelhos
E se alguém tem de desaparecer geralmente sou eu que me presto a tal serviço
Tu ficas para ouvir os aplausos e nunca me contas das pateadas e dos assobios
E foi assim que descobri como se fazem filtros com o amor
Preocupa-me que ainda não tenhas chegado a esta cadeira que fiz para ti
E logo te havias de atrasar no dia em que te queria surpreender
Que estranho é essa coincidência ser no preciso dia em que te ia falar ao ouvido
Não queria que ninguém soubesse que coisas te digo quando te separo do universo.

segunda-feira, outubro 27, 2014

a bailarina

Para que se saiba, ou para que apenas fique registado, independentemente de se vir a saber ou de, sequer, interessar a alguém, vou contar a história da bailarina que caiu em desgraça e acabou a dançar ao sol e para outras estrelas de menor importância.                                                   
Não muito longe no tempo, mesmo sem saber se é ele que passa ou se somos nós que passamos e, deste modo, fazemos o tempo, uma jovem de tamanha leveza, que inúmeras vezes se confundiu com uma ave, vivia no auge de toda sua magnificência, abundava a força, a vitalidade, a beleza, o arrojo, o desprendimento por tudo o que fosse além do fruir o imediato. Esta rapariga, passado que foi o tempo próprio de o ser, logo depois mulher, tinha tudo de que é feito a riqueza, mesmo aquela riqueza que se vê no que se possui por mero capricho ou ostentação, coisas pequenas a que nenhum ser humano escapa, por mais perfeita e bem acabada que seja a obra... Ora, alguém assim, imagina-se imortal em demasiados momentos para ser verdade, mas dificilmente aceita que isso seja miragem, ou coisa impossível de mais para ser parte da realidade. E, quando essa sensação de imortalidade se apossa de alguém, a única modalidade de acontecimentos que a trará de novo ao reino dos simples mortais é aquela que fala das grandes desgraças, das hecatombes que fazem eco e permanecem arrastando-se por muito tempo.

Todos os palcos se renderam ao seu encanto, à magia com que riscava figuras no espaço, figuras que passariam a viver para sempre na memória dos que felizes a viam nesses momentos fugazes de que se faz a eternidade. Teve amantes demorados e de corpo inteiro e outros que no instante seguinte fugiram para não cair no abismo da perdição. Teve promessas de enlouquecer só por uma única dança e dançou algumas para satisfazer a sua perfídia e outras para desgraçar propositadamente a sua pífia educação católica. Teve a aura do sucesso que lhe abriu as portas mais difíceis e a guindou aos concorridos lugares da fama. Teve dias sem calendário e noites longas de mais para caberem em palavras.

Os seus movimentos eram graciosos por natureza e, por isso, pouco esforço dedicava ao treino do corpo. Tudo em si fluía como se só assim pudesse ser. Todos os outros camaradas de companhia sofriam as agruras das longas horas a tentar domar o corpo e a suportar a dor de exigir de um humano tarefas sobre-humanas. A inveja mascarava-se nos curtos sorrisos e na raiva interior. Ninguém consegue perceber porque o destino escolhe sempre os outros para brilhar e nos reserva uma tíbia luz que nem nas trevas mais pesadas alumia rosto inteiro.

Mas o deslumbramento!… Muitos nos esquecemos daquilo que o deslumbramento é capaz de trazer e já muito longe e alto na queda vai Ícaro para ainda haver memória bastante; e Narciso também já demasiadas vezes viu o inverno destruir-lhe o esplendor e a beleza, que a primavera paciente recompõe uma e outra vez, para que ainda haja quem recorde a sua insana sina. Se a nossa bailarina apenas suspeitasse que arrastamos, da mesma forma que os cometas o fazem com a cauda, todo e cada gesto, toda e cada decisão, todo e cada instante de estarmos vivos – porque é esse o preço de estar vivo! – talvez desenhasse ainda passos noutros palco e percorresse outras inflexões musicais… Mas, se assim fosse, ou tivesse sido, nunca eu a teria visto bailar como as aves do paraíso num cais que é o palco do Tejo, e isso seria desequilibrar o universo das memórias que contam.

A perdição ou a salvação de uma vida, que é única e vivida sem mestre nem livro de instruções ou possibilidade de apagar e reescrever, chega de muitas e variadas formas e talvez apenas o poeta e a bailarina tenham percebido o que nela verdadeiramente se joga, e só eles possam afirmar de forma absolutamente autêntica: «Mais qu’importe l’éternité de la damnation à qui a trouvé dans une seconde l’infini de la jouissance?»

quinta-feira, janeiro 23, 2014

o fotógrafo


O olhar felino deve-o ter herdado, muito provavelmente, de um parente longínquo de África. Do alto da sua mediana estatura perscruta o horizonte da grande praça, como faria na savana sobre a alta erva ondulante ao fim da tarde. Chega a rodar sobre um só pé, como bailarino experimentado, sem perder o equilíbrio, abandonar o ritmo, perder a melodia, ou esquecer o tema de fundo, para percorrer, com inegável souplesse, sem falhas, todos os pontos cardeais.

Armado de inofensivo instrumento de captura, avança sobre as indefesas presas. Várias são as vezes que arremete sem sucesso, mas, ocasionalmente, é vê-lo triunfante, fazendo o “v” de vitória, com um amplo sorriso aberto no rosto, enquanto contabiliza “mais uma” na coluna do haver. Frente a frente, olhando a presa surpreendida nos olhos, amolecendo-lhe as defesas, negoceia no meio da praça o seu mundo todo.

Imagino, ao longe, a conversa numa das muitas línguas possíveis. De residente antigo do burgo, transmutar-se-á, num ápice, em mais um dos que aqui aportam em deslumbrado périplo turístico. A cidade velha apaixona qualquer um, logo a comunhão de espíritos apaixonados pelo lugar é conseguida sem particular habilidade ou verve sedutora. Já o conseguir arrastar essa paixão para outros temas, outros lugares, outros tempos, é a verdadeira prova de fogo, o verdadeiro e derradeiro desafio. Muitos e muitos são os fracassos e, por isso, mais saborosas são as esporádicas vitórias. Cada vitória retempera o ânimo, aconchega o amor-próprio e alimenta as futuras investidas.

Conheço-lhe o ar triste das longas esperas em vão e o ar de festa quando, recolhendo pacientemente a linha, vê que o anzol está seguro e que é apenas uma questão de tempo para ter as escamas cintilantes ao alcance da mão. Seriam cómicas se não fossem trágicas as suas corridas de costa a costa, de sereia a sereia, de presa a presa.

Do engenho e da arte muito tenho ouvido falar, mas não há nada que supere a arte em ato. Acredito que este jovem artista tem uma parede em casa onde coloca os troféus. Dispostos segundo a beleza, talvez a maciez da pele, porventura o grau de loucura ou, talvez, da mais para a menos ingénua.

Porque é necessário manter viva a descoberta a cada dia, porque é necessário desbravar um novo corpo para revisitar o que há de mulher em cada mulher, cada fotografia inicia e finda uma história e esgota toda a luz e sombra possível. Imagino que nesses dias em que a fotografia lhe franqueou o que há de ternura na pele que se desconhece, ele possuído por um alucinado e incendiado lirismo lhes grite ao ouvido: "amar-te-ei eternamente até amanhã de manhã, porque de tarde sou fotógrafo…"