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quinta-feira, janeiro 23, 2014

o fotógrafo


O olhar felino deve-o ter herdado, muito provavelmente, de um parente longínquo de África. Do alto da sua mediana estatura perscruta o horizonte da grande praça, como faria na savana sobre a alta erva ondulante ao fim da tarde. Chega a rodar sobre um só pé, como bailarino experimentado, sem perder o equilíbrio, abandonar o ritmo, perder a melodia, ou esquecer o tema de fundo, para percorrer, com inegável souplesse, sem falhas, todos os pontos cardeais.

Armado de inofensivo instrumento de captura, avança sobre as indefesas presas. Várias são as vezes que arremete sem sucesso, mas, ocasionalmente, é vê-lo triunfante, fazendo o “v” de vitória, com um amplo sorriso aberto no rosto, enquanto contabiliza “mais uma” na coluna do haver. Frente a frente, olhando a presa surpreendida nos olhos, amolecendo-lhe as defesas, negoceia no meio da praça o seu mundo todo.

Imagino, ao longe, a conversa numa das muitas línguas possíveis. De residente antigo do burgo, transmutar-se-á, num ápice, em mais um dos que aqui aportam em deslumbrado périplo turístico. A cidade velha apaixona qualquer um, logo a comunhão de espíritos apaixonados pelo lugar é conseguida sem particular habilidade ou verve sedutora. Já o conseguir arrastar essa paixão para outros temas, outros lugares, outros tempos, é a verdadeira prova de fogo, o verdadeiro e derradeiro desafio. Muitos e muitos são os fracassos e, por isso, mais saborosas são as esporádicas vitórias. Cada vitória retempera o ânimo, aconchega o amor-próprio e alimenta as futuras investidas.

Conheço-lhe o ar triste das longas esperas em vão e o ar de festa quando, recolhendo pacientemente a linha, vê que o anzol está seguro e que é apenas uma questão de tempo para ter as escamas cintilantes ao alcance da mão. Seriam cómicas se não fossem trágicas as suas corridas de costa a costa, de sereia a sereia, de presa a presa.

Do engenho e da arte muito tenho ouvido falar, mas não há nada que supere a arte em ato. Acredito que este jovem artista tem uma parede em casa onde coloca os troféus. Dispostos segundo a beleza, talvez a maciez da pele, porventura o grau de loucura ou, talvez, da mais para a menos ingénua.

Porque é necessário manter viva a descoberta a cada dia, porque é necessário desbravar um novo corpo para revisitar o que há de mulher em cada mulher, cada fotografia inicia e finda uma história e esgota toda a luz e sombra possível. Imagino que nesses dias em que a fotografia lhe franqueou o que há de ternura na pele que se desconhece, ele possuído por um alucinado e incendiado lirismo lhes grite ao ouvido: "amar-te-ei eternamente até amanhã de manhã, porque de tarde sou fotógrafo…"