Já corri tanta praia à procura do
único grão de areia que me falta e vou ter que continuar porque sem ele este
castelo de tanto de tudo não se segura. Arquitetarei lugares efémeros para
receber a noite com seu corcéis de sangue, enquanto os estábulos que mandei
fazer em vime entrelaçado não vierem das margens de qualquer desassossegado rio.
Há uma batalha à espera que alguém tenha uma vontade de morte, mas talvez a
morte se canse de esperar e se faça coisa natural e suave como os fins de dia
de junho quando amorna o vento e as aves são exclamações em voo dolente. Aqui
deste lado, à sombra do castelo quase perfeito, vejo o mundo todo e paro sempre
o olhar à tua porta grená. Esse vinho na cor embebeda-me e por isso toda a
outra viagem que me obrigo a fazer é de uma violenta lucidez. Cruzo-me com
raparigas magníficas de tão breves e descubro que há um pintor renascentista a
desfazer-se dos amores porque lhe faltam as telas e o tempo. Os gritos das
cores compõem a geometria rigorosa dos campos e o moleiro recolhe as velas
porque apenas quer o assobio do vento para recitar a noite. Quando forem três
horas o luar e o voo da coruja virão do mesmo lado do horizonte e um fio de
frio beijar-te-á os ossos só para que saibas que estás vivo. Sobressaltos são
abertos pela manhã e o dia é um limão gotejando na boca e ainda que beijes toda
a água do mar e barcos de ampla vela ondeiem teus lábios só a mulher que amas
saberá neutralizar a acidez do destino que não existe. Olho este relógio de
dizer horas, porque não tenho os olhos dos gatos para ver as horas – como fazem
os chineses -, e percebo que é quase silêncio certo neste mostrador inox que
foi prenda de uma quarta classe de reis, rios, caminhos-de-ferro e alguns
adjetivos superlativos. Entretanto no rendilhado da costa e no corpo oceânico o
mar trabalha para que o meu castelo se cumpra. Somos mais líquidos do que sólidos
e ainda assim não nos cresceram escamas em nove meses de amnióticas navegações.
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terça-feira, março 31, 2015
sexta-feira, março 27, 2015
Meio dia absurdo ou a morte do poeta
Por entre sinos, buzinas e cornetas sem luz nem lustro o dia
acabou por surgir mais curto que os outros, mas igualmente sinistro e decisivo.
Amélia tinha uns pequenos laçarotes, em tom rosado ou vermelho demasiado gasto,
que usava só em pensamento. Habilidade muito difundida esta de usar coisas em
forma pensada. Falo de mim próprio, quando me vejo nas margens e sem fôlego
para atravessar para o lado da sombra, quando
isso acontece, imagino uma árvore com uma copa saia rodada, com cigarras em
dose reduzida, frutos já colhidos, e posso assim continuar num sol de 42º até
haver escadas de água branca e casas de cal luminosa. Tenho mais dificuldade
com as palavras do que com os lugares e, por mais que fechem as janelas e roubem
os marcos geodésicos, perco-me com muito maior frequência no significado do que
nas encruzilhadas por onde navego. Não preciso de relógios, bússolas e de nada
me servem as estrelas porque as confundo todas numa imensa orgia de cor e de
noite não vejo aqueles galos que nos telhados confidenciam para onde sopra o
vento. A vida é como os chocolates é o que eu sei cada vez melhor. Os amargos são
os mais saudáveis mas poucos os querem para despedir os dias. Coisas absurdas
atrás de coisas absurdas acontecem se nos damos ao trabalho de estar atentos, e
é talvez nestas alturas que homens de coração robusto, trabalhado em granito,
descobrem que a mariquice das lágrimas liga bem com uma mini fresquinha, porque
só choram quando o gás os engasga. Abro uma gaveta quando me quero aventurar
num mundo novo. Debaixo da folha de papel com malmequeres miniatura que lhe
forra o fundo há sempre uma carta, um postal, uma certidão de ter morrido,
casado ou nascido. Em pequeno cheguei a pensar que já as vendiam assim, que só
lhes acrescentavam as bolas de naftalina e o ruído da madeira seca a aninhar-se
na escuridão da cômoda. Sei agora que são lugares onde se guardam os sedimentos
dos dias vividos. Há um pouco de cada um de nós espalhado pelo fundo das gavetas,
e hesito em chamar-lhes berço ou esquife apenas porque não sei para que lado se
inclina a memória. Gostava de pensar a cores, mesmo nos dias sinistros e
decisivos, porque assim podia escorregar no arco-íris sem precisar de uma
licença de infância ou ter que pedir um poeta emprestado à morte.
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