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sexta-feira, outubro 19, 2018

manifesto contra o tempo


Um gajo fica deveras fodido quando descobre que o filho da puta do tempo é um vetor orientado que vai alisando e tornando infértil os terrenos por onde passa. A paisagem, antes diversificada e frondosa, chegando mesmo a ter frutos ímpares, é agora monótona e incolor. O corpo, que era uma espécie de vulcão que nos esforçávamos por manter dentro da cratera, mesmo quando em erupção, é agora uma imagem espetral cada vez mais pálida e de limites imprecisos.

Esta maneira de consumir o pavio em lume brando, fingindo que se ilumina alguma coisa, quando, de facto, apenas se consegue ver onde se coloca o pé seguinte e nem sempre, é uma espécie de tortura. Uma espécie de imposto diluído a pagar pela vitalidade, pela força, pelo ânimo, pela vontade e desejo que nos foram preenchendo dias atrás de dias.

Não temo envelhecer. Até porque não é retórica dizer que se está a envelhecer desde que se nasceu: é um facto! Mas chateia-me esta substituição da força pela flacidez, da garra pela condescendência, do espírito pronto pela inércia supostamente contemplativa.

A idade transforma-nos de uma forma indecente, alheia à nossa vontade. Deixamos de ser senhores de partes do nosso corpo que ganham, por estas alturas, vontade própria ou, na pior das hipóteses, não respondem seja qual for a vontade que as provoque. Ocorrem, com uma frequência desajustada, o mau feitio, a revolta, a ira, e o desejo de fechar os olhos.

Em tempos cuidava, e cuidava mal, cuido eu agora, que aqueles velhos que demoravam a mover-se, que pareciam um guindaste em periclitante equilíbrio ameaçando dobrar-se de vez a cada instante, eram preguiçosos, apenas procuravam chamar a atenção uma vez o charme do vigor já ido… pois, de facto, a injustiça acaba sempre por ser corrigida, demore o que demorar, e o verdadeiro justiceiro, Anaximandro dixit, é o tempo. 

É verdade que agora dialogamos com mais partes do corpo: falam as articulações, falam os músculos e falam muitos terminais sensoriais que nem sequer imaginávamos que existissem. Em contrapartida, os outros julgam, quem sabe se com razão, que já esgotámos tudo o que tínhamos a dizer e por isso deixam-nos descansados e absortos com as nossas novas e demoradas vozes de dentro para dentro.

Mas a idade traz a sabedoria! Oh, que felizes deveríamos ficar!... Mas quando chega a sabedoria estamos a fazer as malas e, assim sendo, para que raio nos serve a sabedoria se a viagem das viagens é a mais solitária de todas? Para sabermos o caminho, para não nos enganarmos no caminho? Pois deixem-nos andar sem norte! A sabedoria não partilhada não existe, como as obras-primas por publicar não existem, como o futuro não existe senão quando se faz presente. Trocava, de bom grado, a sabedoria por uns gémeos mais ágeis, por uma coluna versátil, por uns neurónios em excelente forma eletroquímica e por um fígado capaz de causar inveja a Baco...  Será pedir demasiado?




quinta-feira, agosto 02, 2018

da incerteza...


Eu nem sempre sei qual será o enredo do próximo momento e, esse facto, ao invés de me perseguir como uma ameaça, deixa-me a pensar que a liberdade é possível. Liberdade em pequeno formato, simples constatação de não saber programar à distância, péssimo gestor do tempo, outra forma de ser veleiro…

Tudo o que se possa dizer a propósito do modo como cada um faz a gestão do seu tempo é aceitável. Sei que há aqueles que temem um segundo de vazio como os beatos temem o mais pueril dos pecados, ambos sofrem terrível e irremediavelmente essa queda no abismo. Mas há outros que navegam sem carta, ou o moderno gps. Hesito em chamar-lhes aventureiros, embora também estes caibam nesta secção, e por isso chamo-lhes apenas espetadores pacientes. Sabem que por mais tarde que cheguem haverá sempre um lugar para eles e, mesmo que o lugar não seja o melhor, isso não significa que a cena de entrada que perderam roube a magia do filme ou que aquilo que não viram não possa ser imaginado com vantagens e deslumbramentos que o realizador sequer sonhou.

Também não tenho muitas certezas, embora oiça amiúde dizer que a idade nos traz certezas. Pois, a mim, a idade traz-me tempo e pouco ou nada de certezas… Claro que fica bem aos olhos dos outro, e à composição da nossa autoimagem, afirmar sem um átimo de hesitação que ter certezas, ter fixado respostas definitivas, é uma prova de maturidade, mas… e as dúvidas que ficaram instaladas nos bastidores, e a sombra sinistra que tira o resplendor que tal solar afirmação aparentemente transporta? Frequentemente me lembro do outro que tinha amigos que nunca tinham levado porrada, apenas ele parecia ter nascido para saco de boxe, e sei que há muitos amigos assim, gente forte, robusta, superior e que nunca, nunca por nunca ser, se deixa cair, se deixa enrolar como uma serpente ferida de morte no último abraço…

Dizem-nos coisas ao longo da vida, dizem-nos o que já lhes disseram, e se hesitamos em continuar essa cadeia de comunicação, essa veia aorta da tradição, desmerecemos da confiança e não somos mais do que um ruído incómodo para a paz e tranquilidade das boas consciências que urge silenciar. Depois há os corajosos, há os cobardes e há aqueles que têm dias, sobretudo se há público para alimentar a vaidade… Pois eu também sou daqueles que leva porrada, e talvez seja daqueles que mais porrada dá a si próprio. Não nasci para grandes empreitadas, não nasci para subir muitos evarestes, não nasci para inclinar a terra, não nasci para conduzir os povos, mas também não nasci para me embebedar solitariamente. Nasci para me embebedar de imenso, como dizia o poeta, e isso pode parecer uma extrema ousadia, para os que se embebedam apenas com álcool ou com o ódio ao que não é costume.

É possível que a haja um jogo, que cada um joga à sua maneira, entre a vida e a morte. Entramos em campo precocemente, dotados de muito poucas habilidades, e vamos ganhando tempo. Tempo é o prémio. Cada vez que sobrevivemos a mais um luar de insónia, a mais uma paixão em fim de festa, à perda daqueles que respiraram perto das nossas mãos quando as apertaram, ao desaparecimento dos lugares onde escondemos sementes para um dia virem à luz, ao ódio merecido porque fomos crápulas quando podíamos não ter sido, ganhamos tempo. Mas, como nos modernos jogos da era digital, vamos perdendo vidas atrás de vidas, ou como na biologia vamos acumulando lixo nas células e somos cada vez mais incapazes de usar o tempo para fazer a higiene necessária. Envelhecer pode ser, então, sinónimo de fazer mau uso do tempo, de não ter tanto domínio sobre a pilha de segundos que se acumulam e que pode agora ruir, apenas porque me esqueci de fechar a porta e a corrente de ar os fez estatelar num chão que é duro de mais para que os segundos caiam confortavelmente, como antes acontecia. 

Não tenho a certeza...

domingo, abril 01, 2018

o cavalete


Theo devia ser um irmão muito especial... Não o deixava morrer à fome, eventualmente suportaria o custo dos pincéis, tintas e telas e teria sempre disponível uma palavra de conforto nos tempos de maior desespero.
A família de amigos tem o privilégio de aceder aos lugares que permitem prolongar a  sobrevivência. São uma espécie de aporte imprescindível de oxigénio quando a apneia se afigura fatal…
Outros há, porém, que nasceram sozinhos, sem qualquer espécie de irmãos ou amigos que saibam, para além do nome, dizer palavras que aquietem o desânimo. É verdade que também estes podem ter história, podem ter deixado marcas na vida dos outros, ter mesmo acreditado, a espaços, que futuro não é só um tempo verbal.
Não havendo Theo resta-lhes a fome, o desabrigo, a solidão magra dos dias de incerteza absoluta. Todavia podem continuar a ser artistas… Todos sabemos que os artistas passam fome, emagrecem para caberem nos papéis, ou para pesar menos quando morrem. Todos sabemos que os artistas enlouquecem mais vezes que os humanos vulgaris de lineu e isso é o preço que a fama lhes cobra. Todos sabemos que os artistas são assessorados por deuses menores para também eles poderem participar na criação. Todos sabemos que os artistas ao beber néctar e ambrósia de imediato alucinam porque se deixam sugestionar por paraísos e palavras esdrúxulas que anestesiam a língua. Todos sabemos que os artistas são nuvens pouco densas e ainda assim nos trazem tempestades à alma.
Eu conheço um artista destes. Tem uma morada com uma vista privilegiada sobre o Tejo, é o primeiro a ouvir o rumor da ondas brandas, mal a manhã desponta. De noite o cavalete é privilegiado com o luar total, e o orvalho em parceria com a maresia deixam uma aguada para uma aguarela a cores suaves. Acenam-lhe dos transatlânticos quando vagam o Tejo e ele retribui o aceno, passando o pacote de vinho tinto de uma mão para a outra. Endireita-se para saudar o sol e retoca com a nobreza dos gestos certos o cartão da barraca por onde toda a noite o vento assobiou fantasias de uma portada entreaberta…
Mas do lado direito, esperando um irmão mecenas, o cavalete, decorado a sacos de plástico, espera por todos os quadros possíveis… Falta-lhe a família e a sorte, mas tem as duas orelhas!

segunda-feira, março 05, 2018

da eternidade possível...


















Não olho os dias segundo o calendário das cores
Perder-me-ia se fosse essa a bússola dos caminhos
De manhã nada espero para que tudo seja novidade
Assim tudo me surpreende se quiser fazer grande o dia
Ou nada me perturba se não quiser somar tempo ao tempo
Decido no momento a duração de vida desse momento
Amar muito ou ficar-me pelo assim assim Insossa figura
Dar tudo como se fosse maior a vontade do que lugar onde caibo
E fazer artesanalmente a minha história imprestável de tão única
Acordar é um privilégio dos que ainda sonham e inspiram
Até que um dia voltemos ao infindável ciclo do carbono
Que é única eternidade que nos há de roubar ao tempo
Do que penso, do que sinto, nenhum átomo sobreviverá
Mas destes ossos que seguram a caneta brotarão ervas daninhas
E outros alimentos para paleontólogos curiosos…