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domingo, abril 01, 2018

o cavalete


Theo devia ser um irmão muito especial... Não o deixava morrer à fome, eventualmente suportaria o custo dos pincéis, tintas e telas e teria sempre disponível uma palavra de conforto nos tempos de maior desespero.
A família de amigos tem o privilégio de aceder aos lugares que permitem prolongar a  sobrevivência. São uma espécie de aporte imprescindível de oxigénio quando a apneia se afigura fatal…
Outros há, porém, que nasceram sozinhos, sem qualquer espécie de irmãos ou amigos que saibam, para além do nome, dizer palavras que aquietem o desânimo. É verdade que também estes podem ter história, podem ter deixado marcas na vida dos outros, ter mesmo acreditado, a espaços, que futuro não é só um tempo verbal.
Não havendo Theo resta-lhes a fome, o desabrigo, a solidão magra dos dias de incerteza absoluta. Todavia podem continuar a ser artistas… Todos sabemos que os artistas passam fome, emagrecem para caberem nos papéis, ou para pesar menos quando morrem. Todos sabemos que os artistas enlouquecem mais vezes que os humanos vulgaris de lineu e isso é o preço que a fama lhes cobra. Todos sabemos que os artistas são assessorados por deuses menores para também eles poderem participar na criação. Todos sabemos que os artistas ao beber néctar e ambrósia de imediato alucinam porque se deixam sugestionar por paraísos e palavras esdrúxulas que anestesiam a língua. Todos sabemos que os artistas são nuvens pouco densas e ainda assim nos trazem tempestades à alma.
Eu conheço um artista destes. Tem uma morada com uma vista privilegiada sobre o Tejo, é o primeiro a ouvir o rumor da ondas brandas, mal a manhã desponta. De noite o cavalete é privilegiado com o luar total, e o orvalho em parceria com a maresia deixam uma aguada para uma aguarela a cores suaves. Acenam-lhe dos transatlânticos quando vagam o Tejo e ele retribui o aceno, passando o pacote de vinho tinto de uma mão para a outra. Endireita-se para saudar o sol e retoca com a nobreza dos gestos certos o cartão da barraca por onde toda a noite o vento assobiou fantasias de uma portada entreaberta…
Mas do lado direito, esperando um irmão mecenas, o cavalete, decorado a sacos de plástico, espera por todos os quadros possíveis… Falta-lhe a família e a sorte, mas tem as duas orelhas!