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terça-feira, março 07, 2017

Build sofas, not walls


É nos lugares mais imprevistos e com as personagens menos esperadas que nos surgem as grandes revelações.
Todos sabemos que a velha Lisboa é agora, segunda década do século XXI, uma espécie de Babel, onde aportam vozes e fisionomias que até há bem pouco tempo atrás eram viajantes de outras latitudes e que só muito esporadicamente por aqui aportavam. A calma, a hospitalidade e o baixo custo de vida, para o standard da maior parte dos países desenvolvidos, torna a lusa terra um lugar muito apetecível.
Um simples passeio pelas ruas que desembocam no rio, ou pela cidade alta, é uma incursão nos compêndios linguísticos e, ao mesmo tempo, um revisitar daquelas cadernetas de infância onde se colavam os cromos com povos das diferentes partes do mundo. Do inglês, com e sem sotaque, passando pelo alemão, francês, italiano, russo, japonês, chinês e, sobretudo, o castelhano, e mais um sem número de sons e palavras indecifráveis, tudo se encontra sem ser preciso procurar muito.
Vêem tudo ao pormenor, com e sem guia; a pé, no afamado 28 ou no infelizmente ruidoso tuk-tuk; parando demoradamente para descansar os pés das exigentes colinas e, na maior parte dos casos, para ler com a luz única de Lisboa um romance que sai, deste modo, inevitavelmente favorecido. Param junto às montras e fotografam as exóticas comidas: pastéis de nata, peixes e mariscos variados, como quem fotografa baratas, gafanhotos ou serpentes sem escalpe num mercado de Banguecoque.
Junto ao rio celebram votos e tiram fotografias de grupo e, alguns, permanecem imóveis, verdadeiramente hipnotizados, tocados pela magia do Tejo, horas a fio, sem qualquer outra intenção que não seja guardar para sempre a visão de uma vida.
Nesta Lisboa há também lugar para os desavindos com o destino, sejam eles lusitanos ou dos que percorrem o mundo, transpõem fronteiras, à procura do paraíso que, para eles, está sempre mais além e, cada dia que passa, parece afastar-se mais e mais. Não chega a estar no horizonte, mas sempre para lá, muito para lá do horizonte, de qualquer horizonte…
De braço estendido, arrastando uma muleta e uma perna destroçada; prostrados sobre si próprios num sono que antecipa um desejo de morte; tocando instrumentos afinados pelos passos apressados ou interpretando um canto agónico que não há álcool suficiente que afine; com os filhos no colo que nunca pôde ser abrigo e ternura; estes humanos, demasiado humanos, são também uma das faces de Lisboa.
Vivendo na miséria, ainda assim mantém um traço de humanidade que me surpreende: a capacidade de partilha. Vejo-os, repetidamente, a dividir o que têm, o que conseguem com as esmolas. Mas, também, são capazes de desenvolver mecanismos apurados de sobrevivência.
No cais das colunas, lugar onde o Tejo beija de forma mais intensa, repetida e cúmplice a cidade, há meses que para sobreviver um casal esculpe uma efémera estátua com areia do rio. Começou por ser um cão, seguindo o modelo do seu próprio cão; passou, posteriormente, para um sofá onde o dito cão aparece refastelado e, numa última versão, o sofá com o cão e ainda uma miniatura de um canídeo na frente junto à caixa que espera pacientemente as moedas que possam cair. A actualidade política está também presente, com palavras de ordem escritas a vermelho: Build sofas, not walls ou Welcome friends except Donald Trump.
Ora bem, os artistas têm também que descansar, é a sua parte humana. As moedas ganhas durante o dia deverão providenciar uma refeição, um lugar de sono e pouco mais. Para ser justo aos factos, providencia ainda umas cervejas ou uma garrafa de tinto, inteiramente merecidas, de resto. Assim, cedo, numa manhã morna de um dia feriado, o artista ainda ausente, a escultura com marcas esparsas das gotas de chuva que caíram durante a noite, foram a oportunidade imperdível para multiplicar a gente feliz e a afirmação mais convincente do valor e importância da arte.
Um dos mendigos, daqueles do braço estendido e da muleta, apropriou-se do território museológico do cais e, timidamente, sempre em modo de alerta, não fosse o verdadeiro artista sair subitamente das areias, encostou-se à parede, qual guardião desta esfinge que se desmoronava, não sem antes colocar a sua caixa de cartão à frente da peça, e aguentou, tanto tempo quanto lhe foi permitido pelo seu medo, a invasão do território alheio. Algumas moedas foram caindo, algumas moedas foram sendo recolhidas e nessa parte da manhã o artista foi o verdadeiro mecenas. Em pouco tempo o dia ficou ganho e tão lesto quanto a muleta lhe permitiu afastou-se do lugar do delito.
A meio da manhã com os escultores ainda ausentes, a efémera obra continuava a ser visitada, registada fotograficamente, enquadrando o Tejo e a ponte vinte e cinco de Abril, e dando azo a comentários que oscilavam do espanto à estupefação. Faltava porém o artista, o curador ou, no mínimo, o vigilante. Mas não faltou durante muito tempo…
O aguarelista residente no cais fixou as suas obras, acomodou os seus parcos haveres e sondou rapidamente o vigor do comércio matutino. Poucos eram os potenciais clientes, pouco interesse despertavam as suas suaves aguarelas, mas muito interesse despertava o sofá, os canídeos, as palavras de ordem e o enquadramento.
O sol era pouco e o chapéu podia ser dispensado para funções mais elevadas e mais altruístas. Aproximou-se e numa reverência estudada descobriu a cabeça e posou o chapéu na frente da escultura. Encostou-se ao pilar e não foi preciso esperar muito para que as moedas fossem caindo de mãos reconhecedoras da grande arte. A musicalidade das moedas a tocarem umas nas outras deve ser para estes homens o verdadeiro, o sublime hino à alegria. Sem outra fonte senão esta que brota da boa vontade, não é difícil perceber esta selecção musical…
Mas se se partilha o que é exíguo, também se protege a pequena propriedade, e em virtude desse desígnio o homem da bandeira, que empresta o símbolo nacional a troco de uma moeda, cuidadoso ao verificar que no chapéu estava uma nota de cinco euros, que podia levantar voo como se de uma gaivota se tratasse,  lesto se apressou a alertar o aguarelista dono do chapéu que, com rapidez e destreza, a guardou no bolso registador.
Primeiro fora uma caixa de cartão, agora era um chapéu e logo mais, chegados que fossem os modeladores da areia, seria um pano, a recolher as migalhas que somadas tornam possível somar dias.
Acredito que o homem da caixa, o homem do chapéu, o escultor de areia e, talvez, até, o homem da bandeira, pertencem todos a uma mesma família e que um cão de areia os guarda e alimenta a todos, o que vem provar de forma decisiva que o cão, mesmo de areia, continua a ser o melhor amigo do homem.