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sábado, setembro 30, 2023

Dias breves

 

Depois vem o cansaço, os dias breves de que não fica memória nem substância, tudo se conjuga para que os balanços aconselhem a mudar de ramo, de rumo ou inventar forma de ludibriar o futuro esperado. Algo de novo e a chama que adormeceu para lume brando, alteia de novo a vontade de aquecer lugares recônditos que já nos esquecêramos de chamar nossos, mas são tão escassos, tão difíceis de arquitetar que, na maioria das vezes, nem sequer arriscamos tentar. O tédio é a pintura dos dias, é o lado sombrio da vigília e a moldura frágil e carcomida dos sonhos. Talvez nem sequer saibamos como animar os sonhos mais pequenos, onde nem com a ousadia nos medimos, apenas com o cumprir o registo comum e habitual de nos mantermos vivos. Admiro de verdade os que sabem sorrir de dentro para fora, os que não procuram a fórmula mágica de ser feliz, porque a inventam, reinventam e usam enquanto inspiram a plenos pulmões as manhãs sempre promissoras. Estas estranhas personagens, por vezes, partilham uma nesga luminosa dos lugares onde colocam faróis e marcas florescentes para convidar os deserdados de si próprios, mas o medo, a vertigem, o risco de arriscar, é um muro intransponível para quem teme o caminho aberto e a perdição cruzando o horizonte.

Um dia, quando a brisa perfumada me adocicar os lábios, imaginarei os beijos adolescentes como o zénite de ter valido a pena estar vivo. Terei, nessa altura, oportunidade de escolher, como quem escolhe numa carta de iguarias, o que foi que alimentou os dias demasiado curtos, porque o gáudio e o prazer supremo cumpriram o tempo, e obrigarei, com a gentileza possível, a memória a povoar-me das vezes em que conquistei território inóspito e aí plantei a vida no seu lado melhor. De pouco serve o desespero e a amargura, apenas se trata, de que quando nelas navegamos, de abrir feridas e condimentá-las com o sal que melhor nos serviria para impedir que se somem dias e dias de insonsa pequenez dos desejos. Tudo se resume à escolha, à liberdade que nos condena, entre ousar ser caminho pelos próprios passos ou ficar amarrado a uma âncora que, com o peso de todos os fantasmas, nos imobiliza frente ao adamastor que oculta a vontade e qualquer alvor possível.


Perpetuidade

 

Abrupto foi o modo como o sol se escondeu por detrás dos teus coríntios ombros, e tu, sem pestanejar, acenaste numa pose diversas vezes ensaiada, mas que resulta sempre de forma convincente. Algumas nuvens na linha do horizonte tingiram-se de umas quantas e inomináveis cores. Os teus olhos, espelho para ambos os lados, ficaram ainda mais fundos que habitualmente. Algumas estrelas aquáticas fugiam para um universo paralelo. Pelo silêncio que se adensava instalava-se uma calma doce e um tempo fora dos relógios e dos calendários mais subtis. Nenhuma ave noturna, nenhum inseto a lembrar a efemeridade, nem um réptil lunar, apenas o vazio absoluto e a tua voz ausente em um fundo de mundo.

Amanhã, que eu não sei quando será, as árvores sairão das raízes como quem ergue os braços numa prece nunca atendida e depois de amanhã, que será após um amanhã incerto, nada se repetirá em honra a Heraclito ou, talvez, a tua pele, onde a história apenas regista aquilo que merece ser eleito como memória, recue no tempo e regresse à adolescência dos cheiros magníficos e das tardes de superlativa paixão. Imagino-te em mármore e eu Miguel Ângelo e havíamos de ser excessivos um para o outro, sem medida humana, sem final anunciado, apenas dávida e entrega sem medo nem reserva para iludir o tempo, para ludibriar a morte.