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segunda-feira, março 18, 2024

Enivrez vous!

Dá-me um COPO com "R" e eu beberei toda a noite!

segunda-feira, janeiro 22, 2024

Da geometria da vida

 

Algumas palavras são redondas por tantas vezes rolarem demoradamente na língua e de tão usadas são as mais amigas, as que mais confortam, as que mais afeiçoam o ouvido aos ruídos do mundo. A memória aloja o nosso nome dito e redito por quem amámos e ainda amamos, mesmo que o tempo os desaloje das nossas vidas e do toque grato das nossas mãos, mas, enquanto houver marcas do passado gravadas na intensidade e na partilha dos lugares de afeto, nada se esvanece por completo. Apercebo-me com maior agudeza que o círculo é a geometria das nossas vidas, o tempo do fim torna nítido o tempo do início e nesta viagem de uma íntima e doce saudade o presente é intemporal. A cada nova viagem surge a descoberta, o detalhe, o pormenor daquilo que passou por nós e da indiferença de então emerge a sombra iluminada do que foi importante apesar de ignorado. Do que nos esculpiu com talhe fino e paciente só muito depois, já o cinzel perdido e o escultor confundido com tudo o que no mármore ficou dito e por dizer, só então, percebemos que a rudeza das arestas que ainda ferem são testemunho do trabalho que em seu tempo ficou por fazer. Infelizmente, só no ocaso dos dias Calíope nos inspira e o que foi dúctil é agora um imenso desafio para que da solidez da estátua de braços caídos se possa ainda cinzelar o abraço que ficou por dar.

sexta-feira, janeiro 19, 2024

A imaginação é uma casa frondosa

 

A imaginação é uma casa frondosa,

nos dias em que os ventos adornam     

as portadas de silêncio azul. 

Na parte esconsa do sótão dançam os fantasmas,

e o soalho range com saudade

          da seiva que em tempos o inebriava.

Cada memória é um degrau carcomido

        quanto mais se desce.

E na cave dormente mora a criança,

o frágil navio sem astrolábio

que lhe diga onde colocar as estrelas,

por isso se alimenta só de lua

e marés grandes para desencalhar o medo.

Na sala de estar o piano forte

de semibreve tornou-se eterno,

e bem no centro o cavalo de baloiço

agita-se na Cavalleria Rusticana

        que já só ele ouve.

As paredes brancas, tela de entretecer os sonhos,

estremecem ainda pela soma dos muitos passos.

Já voaram tantas telhas, julgando-se aves em liberdade,

e em alguns dias de chuva oblíqua

a imaginação em alterosas vagas

é um rio de completo desassossego

e eu, a ponte, olhando de muito acima,

vendo como são frágeis,

estes pilares em que me sustento.

sábado, setembro 30, 2023

Dias breves

 

Depois vem o cansaço, os dias breves de que não fica memória nem substância, tudo se conjuga para que os balanços aconselhem a mudar de ramo, de rumo ou inventar forma de ludibriar o futuro esperado. Algo de novo e a chama que adormeceu para lume brando, alteia de novo a vontade de aquecer lugares recônditos que já nos esquecêramos de chamar nossos, mas são tão escassos, tão difíceis de arquitetar que, na maioria das vezes, nem sequer arriscamos tentar. O tédio é a pintura dos dias, é o lado sombrio da vigília e a moldura frágil e carcomida dos sonhos. Talvez nem sequer saibamos como animar os sonhos mais pequenos, onde nem com a ousadia nos medimos, apenas com o cumprir o registo comum e habitual de nos mantermos vivos. Admiro de verdade os que sabem sorrir de dentro para fora, os que não procuram a fórmula mágica de ser feliz, porque a inventam, reinventam e usam enquanto inspiram a plenos pulmões as manhãs sempre promissoras. Estas estranhas personagens, por vezes, partilham uma nesga luminosa dos lugares onde colocam faróis e marcas florescentes para convidar os deserdados de si próprios, mas o medo, a vertigem, o risco de arriscar, é um muro intransponível para quem teme o caminho aberto e a perdição cruzando o horizonte.

Um dia, quando a brisa perfumada me adocicar os lábios, imaginarei os beijos adolescentes como o zénite de ter valido a pena estar vivo. Terei, nessa altura, oportunidade de escolher, como quem escolhe numa carta de iguarias, o que foi que alimentou os dias demasiado curtos, porque o gáudio e o prazer supremo cumpriram o tempo, e obrigarei, com a gentileza possível, a memória a povoar-me das vezes em que conquistei território inóspito e aí plantei a vida no seu lado melhor. De pouco serve o desespero e a amargura, apenas se trata, de que quando nelas navegamos, de abrir feridas e condimentá-las com o sal que melhor nos serviria para impedir que se somem dias e dias de insonsa pequenez dos desejos. Tudo se resume à escolha, à liberdade que nos condena, entre ousar ser caminho pelos próprios passos ou ficar amarrado a uma âncora que, com o peso de todos os fantasmas, nos imobiliza frente ao adamastor que oculta a vontade e qualquer alvor possível.


Perpetuidade

 

Abrupto foi o modo como o sol se escondeu por detrás dos teus coríntios ombros, e tu, sem pestanejar, acenaste numa pose diversas vezes ensaiada, mas que resulta sempre de forma convincente. Algumas nuvens na linha do horizonte tingiram-se de umas quantas e inomináveis cores. Os teus olhos, espelho para ambos os lados, ficaram ainda mais fundos que habitualmente. Algumas estrelas aquáticas fugiam para um universo paralelo. Pelo silêncio que se adensava instalava-se uma calma doce e um tempo fora dos relógios e dos calendários mais subtis. Nenhuma ave noturna, nenhum inseto a lembrar a efemeridade, nem um réptil lunar, apenas o vazio absoluto e a tua voz ausente em um fundo de mundo.

Amanhã, que eu não sei quando será, as árvores sairão das raízes como quem ergue os braços numa prece nunca atendida e depois de amanhã, que será após um amanhã incerto, nada se repetirá em honra a Heraclito ou, talvez, a tua pele, onde a história apenas regista aquilo que merece ser eleito como memória, recue no tempo e regresse à adolescência dos cheiros magníficos e das tardes de superlativa paixão. Imagino-te em mármore e eu Miguel Ângelo e havíamos de ser excessivos um para o outro, sem medida humana, sem final anunciado, apenas dávida e entrega sem medo nem reserva para iludir o tempo, para ludibriar a morte.


domingo, julho 11, 2021

Ao Renato














«Retorno

 

Fechado o círculo

Eis o encontro

Com o sentido

Contrário

 

Eu mesmo

Comigo defronte

 

Mas depressa

A pressa da fuga

É o confronto

Liberto

 

A face do verso

E do anverso

 

Recomeço

 

A minha medida

 

O que meço»

 

Renato Monteiro

 

Se dizer a tristeza fosse forma de a amenizar eu regressaria de imediato ao tempo das repetições infindas sem que isso fosse castigo, mas não há regresso, não há prestidigitação que sirva para enganar a ausência. É nestas alturas que invejo os que acreditam numa qualquer forma de reencontro, num breve interregno que a seu tempo permitirá reatar o que ficou incompleto, mas esta inveja é coisa de sentir, porque pela razão, ainda assim, continuo do lado do universo irrepetível, desencontrado e absurdo.

Estou cheio dessa ideia apaziguadora do enquanto houver memória, estou cheio desse bálsamo barato de que fica sempre o passado, estou cheio desses paliativos contrafeitos para amenizar a perda, é o futuro a cumprir que fere pelo vazio, pelo silêncio, pelo intocável e tudo isto é irremediável quando o tempo deixa de acolher no mesmo ciclo os que caminhavam juntos.

Calcorreámos estradas, resgatámos veredas, navegámos rios e margens, e discutimos o nome das árvores que nelas escondiam as garças e as cegonhas retardatárias. E visitámos conversas que duraram uma cerveja ou uma borba sem fim anunciado e que entravam pelas noites dentro antecipando o luar absoluto.

A quem vou eu agora pedir conselhos sobre os cinzas que das fotografias se precipitam para a vida? A quem vou eu agora pedir que recite de memória e de forma ímpar os poetas que me ensinaste a amar? A quem vou eu agora pedir que partilhe as histórias de pirilampos, de angariador de paixões pelo deserto, ou de tudo o que é ao Sul tirando a Ribeira e a beleza das coisas simples? A quem vou eu agora pedir que de áfrica relembre os cheiros do capim e das cubatas e a metamorfose dos rapazes que a guerra tornou homens? A quem vou eu agora pedir que sem rumo se faça à estrada porque me ensinaste que viajar é o único alimento das almas inquietas?

Não sei que deuses deva insultar se acaso algum existe, não sei que relógios deva destruir quando me dizem que chegou a tua hora, não sei como me insurgir contra este inclemente e inexorável ciclo do carbono, não sei contra o quê ou quem deva dirigir a minha insanável e descomunal revolta de te ter deixado ir tão cedo e tão breve, querido amigo.


terça-feira, setembro 22, 2020

Ao Diogo

Sabemos todos, como havíamos de não saber, que o inevitável é como um pano de cena infame que cai quando entende que é tempo de dar descanso aos atores. É só então que nos apercebemos que algumas representações são as últimas, que não há próxima sessão, que não há mais voz, nem palco, nem espetadores que partilhem uma qualquer das formas de gostar de estar junto, porque já não há como estar junto. 

A vida vai tecendo uma extensa e emaranhada teia onde alguns ficam sem esbracejar, onde outros, momentaneamente, habitam para logo partir e onde outros, ainda, porque sabiamente nos alertam para o que há de frágil, mas também de espantoso em toda a teia, são o lugar onde a ancoramos. 

Sim, é certo, a memória torna o inevitável, lento, prolongado, suportável. Mas não bebe connosco, não dá abraços, não usa a vontade e o cuidado para se importar com o modo como nos corre a vida, sendo já parte da nossa vida...

Os atores exigentes e inteligentes serão sempre os mais incómodos, porque não se restringem ao papel que lhes destinam, desafiam, inventam, criam, emocionam e reescrevem e comprimem o tempo à sua volta, e também por isso serão os mais lembrados, porque cala fundo a sua ausência. 

Se encontrares por aí o Schopenhauer, ou outro do teu seleto Olimpo, diz-lhe que um dia destes beberemos qualquer coisa juntos e voltaremos a filosofar sobre o que ficou em falta nas tardes que não se cumpriram.

quarta-feira, maio 06, 2020

das estevas


De longe a longe regresso aos cheiros da infância. O resto praticamente não existe. E os cheiros perduram porque ninguém arranca todas as estevas, ou impede que o vento sopre quando quer soprar. Se eu apenas voltasse para rever o que resta de memória visual rapidamente me sentiria perdido, estrangeiro do passado dentro de mim mesmo.

Os meus agostos eram grandes e cheios de aventuras. As velhas, que só o eram porque eu era menino, sentavam-se à porta ao fresco enquanto os paralelos da calçada ainda tinham um resto de sol a arder por dentro, e nós corríamos arrastando o luar e algumas das estrelas mais frágeis. O chico carrão e o palheiro onde não havia agulha que escapasse, o zé corneta e as primeiras lições de bem acertar com qualquer fisga, o bonifácio e o ciúme por uma avó partilhada, a maria joaquina e o jogo do lenço, e com todos eles joguei às escondidas, e tanto joguei que os fui perdendo, escondidos que foram ficando em algum lugar algures no tempo.

Gostaria de ter daquelas memórias fabulosas que tudo guardam, que nunca se confundem e que servem de abrigo a histórias sem fim. Mas, de facto, não fui prendado com esse inestimável atributo. Sensatamente devia habitar em exclusivo o presente, contudo arrisco regressar ao passado e talvez a única vantagem deste frágil arquivista esteja na necessidade de inventar, imaginar, completar os pequenos e sincopados episódios que me ocorrem depois de um esforço insano. À falta de testemunhos fidedignos, tudo o que disser é verdade.

As carroças serviam de esconderijo. Por entre os varais e as enormes rodas, onde a madeira e o ferro se afeiçoavam na perfeição, furtávamo-nos ao olhar indiscreto de quem nos perseguia. As cadeiras de palhinha, um ou outro mocho, um oleado de tapar a cal ou as melancias, davam vida e cor à rua até perder de vista. Os nossos gritos de total alegria não confundiam as conversas dos mais velhos e ninguém se amofinava se os excessos fossem repreendidos com a severidade merecida.

O alcatrão aos poucos ia arrefecendo, solidificando de novo e uma vez mais, enquanto os esparsos candeeiros alimentavam de luz miríades de seres mais leves que o ar. Algumas dessas noites de agosto eram gémeas das noites do deserto e só assim era possível sobreviver ao inclemente estio diurno. O céu, esse magnífico lugar sem fundo, era uma sinfonia de cor e todos os naipes afinavam para que a via láctea e estrada de santiago tocassem em uníssono. Os gatos, todos pardos como convém, observavam-nos com inveja de cima dos telhados e as osgas de olhos esbugalhados aprisionavam no arredondado da língua as melgas antes que estas nos infetassem o sangue. Numa ou outra noite, algumas garrafas de pirolitos da tia maria amélia eram sacrificadas, sendo decapitadas à altura do gargalo para resgatar o esplendoroso berlinde, qual mago liberto definitivamente do presidio da lâmpada.

A recolha era sempre depois dos avisos mais ásperos. Que desperdício ter que adiar a vida por tantas horas. Beijos, abraços e juras de amizade, para sobreviver a uma noite de separação, era um ritual obrigatório. Sei, embora nenhum me tenha dito, que todos sonhávamos o mesmo sonho. E continuo a saber, embora alguns já não o possam confirmar, porque entretanto se completaram e morreram, que quando mais longe essas noites estão mais nítidas e essenciais elas são. É a brisa suave e única dessas noites que procuro quando abro a janela e as estevas me fazem sentir sem tempo.