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quarta-feira, dezembro 16, 2009

Na exactidão do tempo


duas palavras para uma só voz e ainda assim o mercado que era aberto a sul e com oleados a fingir a garganta estreita dos peixes não fechou de imediato e a tua boca é uma praça bela como o paço que é terreiro ou o vento em arremetidas para que se acorde mais cedo e mais capaz para ouvir os cântaros a partir um instante antes de refrescar a água ficam as mãos para afastar os meios-dias para um dia inteiro
o mais é simples e quase vermelho como os poemas dentro dos morangos na exactidão do tempo.

sábado, novembro 21, 2009

Voo no olhar


É turvo o anoitecer e voluptuoso o mergulho no branco da gaivota. Parece haver passos nas nuvens e uma mão de quase chuva. Porque há-de haver um peixe sempre que falo do rio, não bastará o azul e a areia de construir o mundo, não bastará a palavra na margem para chamar a maré?
Deixo que as estrelas venham na sua navegação geométrica aparecer antes da foz. Podia pendurá-las junto à natalícia lareira, mas a chaminé ainda cheira a enchidos e a tímido eucalipto. Será que as gaivotas e as andorinhas do árctico têm das estrelas os olhos riscados, ou apenas uma láctea mancha de todos os excessos?
Ficaram passos no início da terra e no fim do mar. O que há de mais efémero que esta brisa que vai sempre atrasada para a sua morada mais além? Caiu a onda, como a cabeça no ombro, como uma boca na boca, ou, talvez, como todas as outras ondas. São os olhares que teimam em não ser só olhar que desvirtuam as coisas, que as despem, que as reinventam, é por isso que eu odeio esse olhar mesquinho, manso, míope, que guarda a virtude das coisas. Prostituo-me em cada olhar, como a gaivota que se dá a todo o vento, e não recuso dar-me a um novo horizonte ainda que em toque breve.
É preciso voar, é preciso voar! até que a luz do vento se apague e na tarde mínima o cordame da memória se dilua neste absoluto desejo de sem rumo para todos lados rumar...

quinta-feira, novembro 12, 2009

Esperar de olhos sentados...

Para olhar havia uma janela, um dia partiram o vidro e colocaram uma fotografia das Caraíbas, só que a areia escorreu ferindo os olhos... Vieram então os peixes de prata que rodearam o luar e cintilaram na fome do pescador. Um barco de junco entrelaçado veio do antigo Egipto e Cleópatra quis ver como se ama no futuro. Tanto tempo nos calendários, disse ela, e ainda assim continua a haver quem morra à míngua de palavras que não estão mais que um segundo nos lábios. Foi aí que chegaram uns estranhos que inabilmente mexeram no coração dos caranguejos e todas as paixões recuaram. Chamaram, com voz de haver ternura, as mulheres de olhos garridos, injectados de sonhos e sons vespertinos, e ninguém as esperou para colher as papoilas de ígnea brevidade. Logo, chegaram os vendedores de milagres, frios e fundos como a noite, mas irresistíveis como uns lábios que até servem para respirar. Ele há coisas de difícil dizer, ele há coisas de ser sem palavras, ele há coisas de terno e absoluto abandono, ele há coisas de esperar que aconteçam, ainda que isso me dê muito sono…

sexta-feira, setembro 04, 2009

abraço-te à distância...


Ela gesticulava energicamente. Brandia os braços, retorcia as mãos e todo o corpo se agitava como se quisesse com essa forma de expressão mostrar mais do que as palavras, apenas as palavras, eram capazes de mostrar. Um olhar um pouco mais atento pôde mesmo fazer ver que no seu rosto algumas lágrimas desciam pela força da gravidade ou pela força implacável da emoção. Não teria ainda os trinta anos, não era portanto ainda uma mulher balzaquiana, mas evidenciava um ar de arranjada burguesa e uma beleza indiferente à sua condição social. A beleza ocorre democraticamente, a sua manutenção é que pode eventualmente ser marcada pela assimetria social. Incomoda ver alguém que, pelo modo como se agita, indica que o mundo a hostiliza ou, no mínimo, não a compreende e era exactamente isso que um incauto observador, um observador ocasional, um improvável e imprevisível observador dava conta: uma mulher que está ferida ou que antecipa a ferida. Uma hipótese que me ocorreu na altura foi a da perda, isto é, uma perda acarreta sofrimento, acarreta dor, uma espécie de extirpação indesejada, e toda aquela agitação, toda aquela raiva, podia ter os deuses como destinatários ou se não os deuses pelo menos os senhores do destino, quem quer que eles fossem…
Elevei ligeiramente o meu ponto de observação. Queria saber quem a ouvia e era incapaz de atenuar, apaziguar, aquela tempestade. Tive que me deslocar e momentaneamente deixei de a seguir em pormenor. Logo que nova oportunidade surgiu morei nela os olhos tentando identificar o inábil companheiro. Precisei do intervalo entre dois semáforos para perceber que ainda não inventaram “mãos livres” capazes de dar abraços ou limpar as lágrimas.

segunda-feira, julho 13, 2009

da viagem e do horizonte


Para uma viagem nunca sabemos ao certo aquilo que não devemos levar. Há aqueles que se assenhoreiam de metade da vida para levar junto e são poucos, muito poucos, os que se despem até ao mais íntimo para não levar marca do passado. As viagens são, por isso, para estes últimos, formas de nascer mal se fecha a porta. Gostaria de pertencer a esta última casta, mas julgo situar-me numa espécie de ínterim que liga e simultaneamente cinde passado e presente, mas que os leva inevitavelmente na mesma viagem.
Descobri há relativamente pouco tempo o deslumbre da viagem. Não mais que dois passos após a soleira e já a alma se alegra. Se a viagem for mais longa, para lá do que a vista alcança desta janela de uma vida feita na sombra e, portanto, a amenizar a clausura de anos a dormir por dentro, então a distância é proporcional à festa, festa dos olhos, dos odores, dos sons, das texturas e dos paladares, e que embora podendo ser em tudo semelhantes aos de ontem e de sempre ganham pelas coordenadas diferentes o sentido da descoberta e inebriam por isso. E só quem nunca sentiu o sortilégio da ebriedade, uma das muitas possíveis, pode não a desejar repetida.
Nos rios nadam peixes diferentes num azul diferente e os pés cansados afogam-se em águas sempre diferentes. Os verdes das folhas são de paletas afins mas com um pequeno, embora decisivo, pigmento a marcar a diferença. A luz que vai riscando a angulosidade das sombras ao longo do dia varia entre a luz crua e dolorosa e a meiga e morna de entardeceres inigualáveis. E tudo isto sucede por influência do horizonte que se cruza. Para lá do horizonte é o reino do tudo possível. Viajar é por isso a sedução do horizonte e de muita sedução resulta por vezes a fusão absoluta.

segunda-feira, junho 15, 2009

Façamos de conta...


Façamos de conta, como nas histórias de poucas palavras, que o mundo é um pássaro embriagado de cevada. Que a avó é uma nuvem, pode ser um cúmulo ou um cirro, uma coisa ligeira e etérea, mas que ninguém se lembra se a chuva vem de um céu conservador ou progressista. Que em nenhum lugar ficam impressões definitivas, apenas uma leve poalha que convive na perfeição com a eternidade e outras medidas do tempo para os que facilmente se impressionam. Que um dia, daqueles em que morte tem doze horas e a vida vinte e quatro, alguém te chama como quem canta e te lembra que um melro diz o teu nome todas as noites ao largo das três. Que o rio, que pode ser essa torneira que pinga em perfeita sincronia com tudo o que irrecuperável, transborda e leva os peixes a sítios alucinantes. Que tudo o que aparenta sentido, como a intensidade da luz no rosto pela manhã e periodicidade dos equinócios à altura da cintura, é também uma história de mais ou menos palavras e com um final substituível como um chip de memória.

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

Passos imprecisos



De todo o tempo o único que enraíza fundo é o da palavra certeira, da maçã verde e do romance inacabado. Se falta a luz nas margens é porque o rio é memória. Troco uma vida por um olhar ainda que meigo ou incertamente míope. Todos dizem que sabem de que é feito o passado ou os passos imprecisos. Conta-me, apesar de tudo isso, daquilo que te faz respirar ou mastigar um sonho denso, de quantas cores esmaecidas havemos de redigir os beijos incendiários, acontecem dias minuciosos e só dizê-los é assassiná-los para uma realidade maior que a boca ainda que doce, que ágil, que deslumbrada. A tua mão versátil é uma borboleta com os olhos de Darwin e evoluímos juntos e nada a não ser o querer nos cruza. Desce a maré no dorso da falésia, águia de voo lento e coração onde o adjectivo de entrada é imenso. Caem as horas em vez de pingos de líquidos de embriagar, o meu relógio cava os seguros segundos do futuro e do passado, e chego sempre atrasado, tenho fome e o universo é indigesto.