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segunda-feira, julho 05, 2010

my friend


My friend sabe mais da pesca do que muitos alguma vez saberão acerca da vida. É um verdadeiro filósofo crestado pelo sol de uma Lisboa inclemente, não pelo calor, mas pelo desabrigo que dá a alguns dos seus… Pensa cada pormenor antes de escolher o fio, o tipo de empate, o anzol, a chumbada e a altura das marés.
Ele é que nem sempre está de maré, nem sempre peixe decente se deixa tentar pelo suculento anelídeo, e então só resta o refugo, a miséria que flutua. Nessas alturas, a água corre pardacenta, o vento é inelutavelmente frio, e as sombras descem as colinas para cobrirem o Tejo.
De longe, da babilónia dos desalojados da sorte, chegam-lhe os amigos para ouvir as argutas dissertações, para partilhar um não destino, para revender um Tejo tinto, para olhar e aprender as técnicas de parecer feliz. Mas tem filhos que se perderam entre a Ponta dos Corvos e a Baía do Seixal, ou noutro recanto espraiado do Tejo, numa maré de azar tudo foi ter ao mar do esquecimento. Antes assim, dirá num estoicismo inevitável, não preciso de ninguém nem quero que ninguém precise de mim.
A desgraça é maior quando o dinheiro investido não produz nenhum bem, quando as águas correm depressa de mais para que o peixe se deixe ficar por ali a olhar Lisboa, e por engano se deixa enganar. Nesses dias longos, de horas feitas de segundos sólidos como alfinetes a lavrar a pele, valem todas as vociferações contra deus e o diabo, contra os políticos sem vergonha e com vergonha, contra os amigos e os inimigos. É preciso dizer mal de alguma coisa, “dizer mal” é o remédio mais antigo para não se olhar para dentro.
No fim a estratégia de recurso, o kit de salvação, o grau zero do pescador: apanham-se as tainhas. Cegas e prenhas de merda. Mas se lhe esquecer a cabeça e as barrigas talvez engane o estômago, engane a dignidade, engane a corvina que lhe morou o sonho nessa noite e noutras noites todas iguais. Mas mais difíceis que os sonhos e as noites são os dias de obsidiante sobriedade em que tudo teima em ser tão nítido e quanto mais nítido mais obscenamente doloroso. As caravelas do absurdo já não partem: fundeiam no próprio Tejo!

1 comentário:

Anónimo disse...

Eis uma bela crónica, amigo Fazeres, relida como se a tivesse lido pela primeira vez.

E quantos mais "relatos" destes, serias capaz de tecer?

Pena é haver tantos stops a travarem uma marcha continuada.
R. M.