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quarta-feira, dezembro 11, 2024

Haverá vida antes da morte?

 


Haverá vida antes da morte? Pergunta o poeta romeno Dinu, amigo do António Lobo Antunes.  Embora a pergunta possa parecer retórica para os que vivem tão atarefados em viver que não lhes sobra tempo para pensar naquilo que a vida poderia ser, acredito que, para outros, talvez, esta seja uma questão de longe mais pertinente que aquela outra, com que nos azucrinaram a vida e acicataram os medos: haverá vida depois da morte?

Lembro-me que durante a adolescência entre cromos de futebolistas e pósteres de beldades desnudas também colecionava frases. Frases que guardava numa longa lista e que, de tempos a tempos, relia e sobre as quais me detinha para tentar perceber como as podia usar para mudar o mundo, a começar pelo meu pequeno mundo. Ainda hoje, e a adolescência já é pré-história há muito, me lembro de uma boa parte dessas frases, e faço uso de algumas delas quando vem a propósito impressionar com uma citação.

As minhas fontes eram diversas, e nem sempre as mais recomendadas, sobretudo para um futuro intelectual, sendo as seleções do Reader's Digest uma das privilegiadas, uma vez que alguém na redação já se tinha apercebido do bom uso que eu fazia das frases que ia selecionando e que colocava estrategicamente ao longo da revista.  Ainda assim, não descurava uma frase sonora de um qualquer romance ou novela, cuja leitura me ocupava tardes e noites de irrepetível prazer.

Desse tempo, ainda me assalta um pequeno remorso, aliás já pressentido na altura. Como é que alguém que já sabia que o seu lugar na barricada era do lado esquerdo lia uma revista que, despudoradamente, intoxicava os leitores mais desatentos? Mas onde é que eu ia, sem internet, ter uma melhor fonte de pensamentos profundos, já descarnados e prontos a usar? Tentava não me deixar enganar. Quando chegava a noite, apesar do medo do meu pai, lá tentava chegar no velho rádio de válvulas, já na altura lento a aquecer, à rádio moscovo ou à rádio argel e assim contrabalançar essa deriva reacionária.

A partilha do saber é uma daquelas poucas coisas que, como é usual afirmar-se, não empobrece quem dá mas enriquece quem recebe. E, de facto, não há muitas coisas assim. As frases com o seu sentido polido, com o seu teor reduzido ao essencial, com as suas ideias espantosas, produziam a quando da sua leitura repetida a mesma emoção que a descoberta das reluzentes pepitas nos garimpeiros de sonhos.

Haverá vida antes da morte? Parece uma frase retirada do repertório da minha adolescência. A resposta está condicionada pela definição do conceito de vida, na exigência que se coloca naquilo a que chamamos vida. Se restringirmos a vida ao conceito biológico, isto é, cumprir as funções vitais, então tudo o que está animado está vivo e há claramente vida antes da morte, mas se a exigência aumentar, se viver for mais do que comer, beber, procriar, se, como dizia Platão, aos homens não basta viver, é preciso viver bem, então a dificuldade cresce exponencialmente. Porque, então, já não basta perguntar se há vida antes da morte, mas se se viveu bem antes da morte. Se a resposta biológica é relativamente fácil, a resposta filosófica abre ao abismo.

Viver bem é viver uma vida virtuosa. Mas o que é a virtude? Viver bem é ter vencido todos os desafios. Mas o que é um vencedor? E podíamos continuar com questões atrás de questões e, ao invés de nos aproximarmos de uma resposta apaziguadora, apenas conseguiríamos ampliar o nosso leque de dúvidas e inquietações. Mas eu julgo entender a questão do poeta, eu julgo perceber o íntimo da questão, e que não é uma questão tão inusitada como poderia parecer ao início. É, aliás, uma das questões mais recorrentes e que todos colocamos quando nos apercebemos que o fim está para breve. Terei eu vivido o que poderia ter vivido? Terá a minha vida feito sentido? Terá valido a pena? A resposta pode ter o formato de espinho, alfinete, cravo, cadafalso, ou jardim das delícias. Mas valerá a pena fazer este balanço? Não será este balanço uma espécie de tortura anunciada, não será esta retrospetiva espúria e masoquista? Ou será que esta resposta tem, inevitavelmente, a marca do modo como se viveu. Assim, os que gozaram a vida, usufruíram do tempo sem o achar pouco ou em demasia, não se consumiram em raiva de si e dos outros, estes, na hora do balanço, eternizam-se nesse estado de paz e quietude e nem uma queixa os há de lembrar, enquanto os outro, aqueles que se consumiram em azedume, em procurar a perfeição que há dentro da perfeição, a ganância que não cabe na maior riqueza, o maior amor para olhar de cima o pequeno amor, para esses a eternidade chegará sempre cedo de mais e julgá-la-ão um óbvio castigo e nunca uma recompensa.

Haverá vida antes da morte? A melhor resposta, se não a única, é a daquele que vive inteiro e por inteiro, seja lá o que isso for…

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