Haverá
vida antes da morte? Pergunta o poeta romeno Dinu, amigo do António Lobo
Antunes. Embora a pergunta possa parecer
retórica para os que vivem tão atarefados em viver que não lhes sobra tempo
para pensar naquilo que a vida poderia ser, acredito que, para outros, talvez, esta seja uma questão de longe mais pertinente que aquela outra, com que nos
azucrinaram a vida e acicataram os medos: haverá vida depois da morte?
Lembro-me
que durante a adolescência entre cromos de futebolistas e pósteres de beldades
desnudas também colecionava frases. Frases que guardava numa longa lista e que,
de tempos a tempos, relia e sobre as quais me detinha para tentar perceber como
as podia usar para mudar o mundo, a começar pelo meu pequeno mundo. Ainda hoje,
e a adolescência já é pré-história há muito, me lembro de uma boa parte dessas
frases, e faço uso de algumas delas quando vem a propósito impressionar com uma
citação.
As
minhas fontes eram diversas, e nem sempre as mais recomendadas, sobretudo para
um futuro intelectual, sendo as seleções do Reader's Digest uma das
privilegiadas, uma vez que alguém na redação já se tinha apercebido do bom uso
que eu fazia das frases que ia selecionando e que colocava estrategicamente ao
longo da revista. Ainda assim, não
descurava uma frase sonora de um qualquer romance ou novela, cuja leitura me
ocupava tardes e noites de irrepetível prazer.
Desse
tempo, ainda me assalta um pequeno remorso, aliás já pressentido na altura. Como
é que alguém que já sabia que o seu lugar na barricada era do lado esquerdo lia
uma revista que, despudoradamente, intoxicava os leitores mais desatentos? Mas
onde é que eu ia, sem internet, ter uma melhor fonte de pensamentos profundos,
já descarnados e prontos a usar? Tentava não me deixar enganar. Quando chegava
a noite, apesar do medo do meu pai, lá tentava chegar no velho rádio de
válvulas, já na altura lento a aquecer, à rádio moscovo ou à rádio argel e
assim contrabalançar essa deriva reacionária.
A
partilha do saber é uma daquelas poucas coisas que, como é usual afirmar-se,
não empobrece quem dá mas enriquece quem recebe. E, de facto, não há muitas
coisas assim. As frases com o seu sentido polido, com o seu teor reduzido ao
essencial, com as suas ideias espantosas, produziam a quando da sua leitura
repetida a mesma emoção que a descoberta das reluzentes pepitas nos garimpeiros
de sonhos.
Haverá
vida antes da morte? Parece uma frase retirada do repertório da minha adolescência. A resposta está condicionada pela definição do conceito de
vida, na exigência que se coloca naquilo a que chamamos vida. Se restringirmos
a vida ao conceito biológico, isto é, cumprir as funções vitais, então tudo o
que está animado está vivo e há claramente vida antes da morte, mas se a
exigência aumentar, se viver for mais do que comer, beber, procriar, se, como
dizia Platão, aos homens não basta viver, é preciso viver bem, então a
dificuldade cresce exponencialmente. Porque, então, já não basta perguntar se
há vida antes da morte, mas se se viveu bem antes da morte. Se a resposta
biológica é relativamente fácil, a resposta filosófica abre ao abismo.
Viver
bem é viver uma vida virtuosa. Mas o que é a virtude? Viver bem é ter vencido
todos os desafios. Mas o que é um vencedor? E podíamos continuar com questões
atrás de questões e, ao invés de nos aproximarmos de uma resposta apaziguadora,
apenas conseguiríamos ampliar o nosso leque de dúvidas e inquietações. Mas eu
julgo entender a questão do poeta, eu julgo perceber o íntimo da questão, e que
não é uma questão tão inusitada como poderia parecer ao início. É, aliás, uma
das questões mais recorrentes e que todos colocamos quando nos apercebemos que
o fim está para breve. Terei eu vivido o que poderia ter vivido? Terá a minha
vida feito sentido? Terá valido a pena? A resposta pode ter o formato de
espinho, alfinete, cravo, cadafalso, ou jardim das delícias. Mas valerá a pena
fazer este balanço? Não será este balanço uma espécie de tortura anunciada, não
será esta retrospetiva espúria e masoquista? Ou será que esta resposta tem,
inevitavelmente, a marca do modo como se viveu. Assim, os que gozaram a vida, usufruíram
do tempo sem o achar pouco ou em demasia, não se consumiram em raiva de si e
dos outros, estes, na hora do balanço, eternizam-se nesse estado de paz e
quietude e nem uma queixa os há de lembrar, enquanto os outro, aqueles que se
consumiram em azedume, em procurar a perfeição que há dentro da perfeição, a
ganância que não cabe na maior riqueza, o maior amor para olhar de cima o
pequeno amor, para esses a eternidade chegará sempre cedo de mais e julgá-la-ão
um óbvio castigo e nunca uma recompensa.
Haverá
vida antes da morte? A melhor resposta, se não a única, é a daquele que vive inteiro e por inteiro, seja
lá o que isso for…
Sem comentários:
Enviar um comentário