A senhora x
levantou-se, ouvindo o mesmo relógio dos outros dias. Apesar de ser sábado era
como se um ritmo antigo, um misto de relógio de sol, estrelas e lua, demasiado
antigo para ser alterado lhe falasse ao ouvido dizendo que era tempo de retomar
o movimento do corpo. As molas do colchão, com a memória de antigas batalhas,
ecoaram nas paredes, resvalaram no terço de cortiça e abafaram-se no cortinado
desbotado. Tacteou as pantufas, meteu os ombros dentro do robe e abriu a porta
da cozinha. O malhado, companheiro felino, ronronou mas não desviou os olhos
abertos sobre o parapeito que esperavam o sol. Aqueceu o resto do café com
leite da véspera e antes de pôr a dentadura amoleceu o pedaço de pão para
enganar a fome. As janelas do prédio em frente estavam ainda tomadas pela
sombra, a roupa nos estendais fazia lembrar um desfile de veleiros engalanados.
Nos vidros escorriam gotas de orvalho que daí a pouco o calor do sol haveria de
lamber. A casa estava fria. De forma mais precisa: silenciosa e fria, como se uma
qualidade não pudesse existir sem a outra. A casa de banho estava, havia muito,
a pedir umas pinceladas para esconder o caruncho recorrente. A torneira jorrou
água fria em abundância e a concha das mãos levou-a aos olhos. A saia azul escura,
já fora mais escura, agora ganhava um luzido herdado do uso repetido. As meias
de vidro cobriam-lhe as varizes e faziam sobressair o vinco dos ossos. O
soutien apertava-lhe o peito e a alma e simulavam uma orografia há muito
perdida. A escova do cabelo descia repetidamente até aos ombros, numa espécie
de ritmo encantatório. Brancos e cada vez menos eram os cabelos que via no
espelho e estes enquadravam as rugas que não só a idade mas o trabalho e o
sofrimento tinham esculpido impiedosamente. Doeram-lhe os pés quando tentou
enganá-los com os sapatos que a dona Teresa lhe havia dado. Mas eram uns
sapatos bonitos, com dois botões de cada lado e com o espaço para os joanetes
já moldado. Talvez a cor creme não ficasse muito bem com a mala verde que
comprara nos chineses, mas não se podia dar ao luxo de recusar oferendas. Até
porque a dona Teresa lhe dissera que aqueles sapatos tinham custado uma fortuna
há cinco anos atrás. E a cavalo dado não se olha o dente, sobretudo se não vier
descalço. Desceu as escadas e entrou na rua. Eram poucas as pessoas que
arriscavam começar a viver tão cedo ao sábado e os que o faziam era quase todos
seus conhecidos. O Francisco, o leiteiro, a Mariana que fazia a limpeza no
teatro Morgado, a D. Iria que vinha passear os dois cachorros e mais uns quantos
sem rosto, porque não lhes sabia o nome. Caminhou do lado esquerdo da rua,
evitando os carros que escondiam o passeio, contornou o miradouro da penitência
e entreviu os telhados das casas rompendo a neblina. Estavam duas pessoas na
paragem do eléctrico. A senhora Garcês, das poucas que antes de si já usavam
aquele eléctrico e que era pessoa de poucas falas, sobretudo desde que ficara
viúva, embora não recusasse e retribuísse a saudação matinal, e um senhor de
meia idade que nunca vira por aquelas bandas. Era um homem de bom porte, fato
de fazenda, mala de cabedal na mão direita, e um chapéu como aqueles que usavam
os gangsters. Fumava com os dois dedos da mão esquerda muito hirtos e lançava
grandes baforadas de fumo que subiam primeiro numa espiral certinha e logo que
era apanhado pelo vento se diluía quase que por magia. O eléctrico não demorou.
Sentou-se no banco da frente, logo atrás do guarda-freio e passado pouco tempo
já estava a cabecear. Ninguém lhe roubava pelo menos cinco minutos de sono no
eléctrico. Eram estes cinco minutos, achava ela, que lhe serviam para fazer as
pazes com a vida. Abriu as portas do prédio. Um prédio antigo com grandes
portadas e umas escadas de madeira quase tão gastas quanto íngremes. Sentiu a
respiração mais forte e o coração mais vigoroso na batida. Apoiou-se no
corrimão e continuou a subir até ao terceiro andar. Cheirava a mofo na escadas.
Talvez fosse da humidade que nos dias de mais chuva escorria da clarabóia para
as paredes e que alimentava assim lentamente a degradação dos degraus de
madeira mais que centenária. O escritório que todos dias limpava, à excepção de
domingo, era de uma empresa de transportes. O senhor Antunes, o patrão velho,
era uma pessoa austera mas simpática, já o filho, o doutor Rodrigo, era arrogante
e tratava todos os empregados pouco melhor que escravos. Ainda bem que ela
quase o não via. Também quando o via, mesmo que se cruzasse com ele, nunca foi
capaz de um simples bom dia ou boa tarde, era como se ela fosse transparente,
ou tão insignificante que nem de uma simples palavra de saudação fosse
merecedora. Chegou a rogar-lhe uma praga quando o ouviu despedir aos insultos o
Américo que já lá trabalhava há mais de dez anos. Não sabia contudo se a praga
se havia consumado ou não. Não tinha tido o prazer de o ver agarrado à barriga
a uivar como os cães por querer e não conseguir aliviar a natureza. Mas deus
não dorme, era o que sempre dizia. Este era o lema que aplicava sempre que
presenciava qualquer forma de injustiça. Embora muitas vezes fosse obrigada, de
forma pouco católica, a admitir que ele pode não dormir, mas lá que anda muito
distraído, lá isso anda e ninguém tem dúvidas. Limpou tudo com o cuidado
habitual e sentou-se cinco minutos a olhar pela janela enquanto recuperava o
fôlego. Fechou a porta à chave e desceu as escadas cada vez mais íngremes.
Começou a caminhar sem destino certo. Ninguém, a não ser o malhado, esperava
por ela, por isso podia-se dar ao luxo de caminhar e olhar as montras com o
detalhe de quem um dia talvez venha a comprar tudo que aí está exposto. Havia
agora mais gente na cidade, gente apressada, gente distraída, gente que já não
é gente, e até polícias. Do outro lado do largo viu o supermercado a abrir as
portas. Pensou no que precisava de comprar se tivesse dinheiro. Era, aliás, um
exercício repetido para não perder o conhecimento das coisas que é possível
comprar; fazia mesmo visitas a esses lugares, como se se tratasse de uma visita
de estudo. E foi isso que lhe apeteceu fazer nesse preciso momento. Atravessou
por entre os pombos que esticavam e encolhiam as asas como se as quisessem
treinar para voos mais altos, olhou a gente que já quase não é gente, que
dormia aos pés da estátua e contornou a carripana do almeida que varria pérolas
de pó, pois abanava a vassoura acima da cabeça. Entrou no supermercado. Longas
avenidas de cor. Tanta coisa a luzir pelos corredores. Percorreu demoradamente
com um cesto teimando em estar vazio as estantes onde outros gulosamente
retiravam o desejo e não a necessidade. Às vezes chegava a rir da gula dos que
por ali passeavam: um carro apinhado, às vezes mesmo dois carros, e não se
tratava de nenhum comandante a comprar comida para um batalhão. Eram pessoas
que se tratam da melancolia nas compras... O supermercado começava agora a
fervilhar de vida. Era a altura ideal para a sua visita favorita. Abeirou-se do
longo corrimão de cosméticos e como alguém com grande entendimento na matéria
olhou demoradamente o frasco, fingiu ler o rótulo, agitou para ver a limpidez e
a robustez da cor, e, enquanto um olhar lateral a protegia dos olhares avaros, aspergiu demoradamente o peito gasto e suado. Deu dois passos laterais e, com a
mesma sequência de gestos, aspergiu outro com a mesma veemência, um terceiro, possivelmente um quarto e talvez no fim tenha mesmo conseguido afogar
perfumadamente a solidão. Isso já não sei, porque aquilo que narrador viu, com
os olhos e não com a imaginação, foi a senhora x no supermercado numa manhã de
sábado, visitando um a um os perfumes expostos, tudo o resto é ficção, menos o
desejo que a alma lhe tenha ficado, mercê esse gesto, também ela mais aconchegada e perfumada.