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quarta-feira, dezembro 19, 2012

elogio da memória

 
Para a memória é indiferente que o teu rosto se esconda para mudar. Para lá da sombra, do que de nuvens se pode esperar em dias de desencanto, os traços firmam-se no bronze indelével que há logo abaixo da pele, e é lá que a memória mora.

Os pequenos truques de cor não passam de invenções de luz, como esse cabelo que terá ascendido em demasia para tão intenso nevão, e não chegam para iludir os que de perto te reconhecem os passos, mesmo os mais suaves, mesmo os que não se chegam a consumar, mesmo o que de movimento há na mais absoluta quietude.

É quase um gracejo primaveril o olhar que lança uma âncora para impedir partir, ingénuo como um cortejo de personagens de névoa, manso como tudo o que se abstém de acontecer, frágil como o gelo que se faz teto na água de uma só noite.

Em tudo o que respira há um relógio que, embora retalhe o tempo, nada lhe retira nem acrescenta, como esses rios, mares e oceanos que correm no mesmo corpo e são sangue do mesmo sangue e se inventam correntes e marés e são apenas um líquido abraço sobre um dorso de mulher.

Revisito a memória como quem revê um velho amigo, e ela, como os verdadeiros amigos, porque me vive por dentro, persiste nas histórias em que parece ter vivido sozinha, talvez para incentivar o espanto e a admiração e acordar o que da imaginação sobreviveu aos invernos de diluviana realidade.

terça-feira, novembro 20, 2012

o bibliotecário


Todos nós sabemos que as aves de arribação têm uma bússola inserta que as conduz repetidas vezes ao mesmo lugar. Poucos saberemos, pelo contrário, que há humanos, quiçá biologicamente aparentados a essas aves, que gozam do mesmo comportamento: de tempos a tempos, quase com uma meticulosa certeza, voltam ao mesmo sítio.

É evidente que, para determinar com suficiente rigor tais frequências, necessário se torna adotar semelhantes comportamentos. Se de máquina fiel registadora não podemos fazer uso, só nos resta uma saída: aumentar o nível das coincidências e depreender, desse irrefutável facto, que se nós regressamos muitas vezes e o outro regressa muitas vezes, então assume-se como consequência necessária que também o outro tem um comportamento repetitivo.

Das razões da nossa rotina, das visitas sucessivas, do tempo que nesse lugar passamos, conseguimos, com relativa facilidade, dar conta e explicação convincente. E desses outros, desses que tanto ou mais do que nós ao mesmo lugar regressam vez atrás de vez, será que saberemos enunciar as razões? Temo que não.

É nesta altura da conjetura que a imaginação se impõe como um guia mais ou menos fiável, fiabilidade esta que dependerá do grau de dados objetivos que tome em consideração e que lhe sirvam de ponto de partida. Dalguns sabemos a suposta nacionalidade, a língua que falam, os conhecimentos que veiculam e o modo como se relacionam com outros naquele palco iluminado. Como sobrevivem? Que forma mais ou menos clara os mantém com capacidade para suprir as necessidades diárias? De onde vieram para onde vão? Quanto há de verdade no que dizem, no que dizem do que fizeram, ou no que fizeram do que dizem? São personagens enigmáticas que falando aparentemente de si nunca saberemos de quem falam.

Ocorreu-me hoje e com a evidência da intuição cartesiana: Lisboa é de tal maneira acolhedora que só podemos estar perante personagens que se cansaram dos romances e quiseram ser gente durante breves instantes roubados à eternidade da obra. É possível que, um dia destes, Paco volte ao romance de Ballester de onde saiu para ler o El país e sonhar ser basquetebolista; que o tunisino volte a ser uma personagem de Camus ou de Maluf, mesmo que não saiba quando a mãe morreu; que o negro cantando blues e gospels volte para o disco de onde tirou umas breves férias, cansado de tanta volta em torno de si mesmo; o encantador de gaivotas volte para a caneta de Sepúlveda, ainda com algumas migalhas de pão para espalhar pela mesa de trabalho e que a velhota que adormece nas escadas do cais, dias incontáveis, volte a ser a sereia que se apaixonou irremediavelmente por marinheiro de outro tempo e outras navegações.
Quando isso acontecer será tempo de arrumar as câmaras de vez e castigar com a irremissível solidão o bibliotecário do cais.

segunda-feira, outubro 01, 2012

reservado


Palavra por palavra e o caminho surge pelo nome das coisas como se a luz dos dias apenas iluminasse o que pode ser dito por um qualquer recado assim descobrimos a sonoridade  criadora e descansamos o olhar na língua inaugural todos somos crianças entregues à sorte do alfabeto entre alfa e ómega uma nota segura a compreensão do universo e as aves desafiando a gravidade não se entusiasmam nem regozijam de júbilo em tal evidência apenas nós senhores do sentido ou temporários guardiães do sentido percebemos a perfeição de gotas simétricas que de queda em queda fazem erguer a vida.

terça-feira, setembro 04, 2012

Avieiros II

No rio morre-se menos. Só esta vantagem já poderia justificar a mudança, mas também as terras mais próximas e acolhedoras deixam-se domar pela altura em que a fertilidade as impele a serem recetivas à semente.
Ao que soube quase todos, senão todos, os homens do rio foram, são, ou ainda hão de vir a ser homens divididos entre marés e sementeiras. A pobreza das águas não dava para sustentar todo o ano as bocas, vestir os corpos e habitar uma casa. Em tempos em que a necessidade era mais comum e ofensiva, a vergonha não deixava que este homens e mulheres vivessem noutros lugares e com outros diferentes da sua mesma sorte. Assim cresceram ao longo das margens, desse rio bilingue, aglomerados flutuantes de vidas, histórias que hoje só têm registo na memória dos que já não têm memória e nas ruínas das pequenas casas longe do chão como as cegonhas e dessas outras simulacros na proa das bateiras. Apodrecem em conjunto as casas, que o não foram verdadeiramente, e os barcos de um azul cada vez mais impercetível.
Ainda há quem adormeça ouvindo as pedras saltitando no virar das marés, ainda há quem sonhe com redes repletas de sável e uma festa de escamas reluzentes nas cestas e sobretudo nos olhos, ainda há quem cheire os ventos de tempestade e adormeça entre rezas para nunca se afogar numa cama e na velhice, porque uma morte feliz é quando a maré vira e a água deixa sulcos, como se fosse um arado, na areia das margens.
 

Avieiros I



Ao longo do Tejo, bordejando as águas, por entre salgueiros, choupos e alguns ulmeiros, vive gente que sabe de cor todas as cores de que ele é capaz, que tem um mapa absolutamente fiel das suas correntes mas que, acima de tudo, o respeita como se costuma respeitar o que nos alimenta e, por isso, nos mantém vivos.
Aos poucos, ouvindo as suas histórias, curtas de palavras porque não foram feitos para historiar mas para viver, comecei a entender como podem os irmãos só o serem porque filhos de um destino comum. Assim acontece com estes homens e mulheres que desceram ao sabor da corrente esperando encontrar uma praia, um meandro, um baixio onde fosse possível começar de raiz a viver.
Já se passaram algumas gerações, em certos casos, e noutros apenas uma medeia o passado e o presente. E porque o mar em mediana altercação é tão perigoso como um rio que engrossado tudo arrasta até à foz, muitas famílias deixaram a areia ou o pedregoso das falésias para virem na sombra do rio assentar ferro e entre a oscilação longa das marés reiniciar a vida.
Têm o corpo retorcido como se tudo neles fosse um reflexo do próprio rio rasgando curvas nas margens, descendo calmamente planícies ou pulando para fazer espuma nas fragas negras e velhas de mais para terem um tempo calendarizável.

quarta-feira, agosto 22, 2012

a nossa sorte...


Podia escrever sobre o mundo nos seus mais ínfimos pormenores: a queda da folha no seu outono próprio na bilionésima segunda árvore a contar do lado esquerdo do continente africano ali no coração do zaire, ou será que já não existe o zaire e esse grande pormenor ocultou-se aos meus olhos?... Podia falar do bicho-da-seda que resolveu tecer-se a si mesmo numa caixa de sapatos ténis baratos numa favela do rio e tem sonhos de borboleta várias vezes ao dia; podia falar de uma imprecisão no osso externo de um gibão fémea que lhe dificulta as acrobacias matinais ao redor da fruta doce e suculenta; podia falar do oitavo planeta que gravita uma estrela no coração de andrómeda onde corre ácido sulfúrico numa cascata fumegante e não há ninguém para adormecer à janela; podia falar de tanta coisa sem mérito nem significado mas temo despertar-vos para lugares sem luz artificial nem sofrimento, por isso falo-vos apenas do tempo incerto para amanhã à porta do vosso desespero…

segunda-feira, março 26, 2012

de um só dia




A música como uma insidiosa serpente enrosca-se na boca pequena,
nos violinos saídos do ventre magnífico das prostitutas
um poema é escrito para impedir que a noite possa fechar,
o cavalo das tuas coxas fulminantes salta todos os obstáculos
e a cor azul desbota dos teus olhos grandes para dizer a foz,
os rostos tocam-se numa bissectriz rente aos lábios
e quando tudo isso acontece, sem que o tempo o saiba,
eu danço com as palavras e morro no dia único das borboletas
porque tão efémero é aquilo que digo como aquilo que vivo.

terça-feira, março 06, 2012

dos deuses e do cómico


Entardece nas colinas de Lisboa. A verticalidade calcária da igreja impõe-se no rigor da sua branquidão a toda a cidade em redor. Corre uma aragem minuciosa e fria que fende a pele nos lugares expostos. A porta range nos gonzos e abre para um lugar divino a acreditar nos crentes.
Solicito, o moço guardião, pede-nos que tomemos um dos corredores laterais, uma vez que se está a realizar uma cerimónia litúrgica. Surpresos, porque os religiosos se não divisavam, dissemos ao que vínhamos: à imposição do novo manto ao senhor. A nave central franqueou-se-nos de imediato. Se vos move tão nobre objectivo, podeis dirigir-vos para a sala ao cimo das escadas.
A sala era pequena. Algumas das testemunhas não tinham conseguido lugar prioritário e amontoavam-se na porta franqueada. Movi-me estrategicamente e, junto de uma das ombreiras, serpenteei o olhar por meia sala, a parte que me foi permitido aceder do lugar em que me encontrava. Rostos compenetrados, com um profundo e temeroso respeito, deixando, na maior parte dos casos, ver as marcas do tempo, olhavam centripetamente um vulto no centro da sala. Podiam ouvir-se, se de ouvido atento fizéssemos uso, pequenas ladainhas de pesar. Algumas mãos retorciam-se de autêntica paixão.
No meio da sala, no coração de todos mas no meio físico e geometricamente definido da sala, um figura imponente permanecia passiva e pacientemente imóvel. Não obstante sobre si pendia, não a luz sapiente e omnipresente do pai, não o espírito santo em trabalho quotidiano, mas uma formidável e intimidante chave de fendas em trabalho de aturada e escrupulosa pontaria. Cada vez que a chave descia, como há dois mil anos atrás cada martelada no cravo, a multidão sentia um quase fatal aperto no miocárdio. A auréola do senhor, com a rosca provavelmente moída de tanta renovada imposição, teimava em não unir-se ao corpo do senhor. Do fundo do meu olhar sacrílego e lutando tenazmente entre o cómico respeito e respeito cómico, só me lembrei do poema de Augusto Gil: mas as "beatas", Senhor, porque lhes dais tanta dor?!... Porque padecem assim?!...
Abandonei o cerimonial com uma atinente dúvida metafísica: será que no fim, já noite dentro, lhe ministraram paracetamol para as dores causadas por tão satânico parafuso?