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sexta-feira, novembro 30, 2007

Antes do ocaso...


Trazer as chaves com os dedos em riste, nunca se sabe se a porta abre para o abismo. Do mesmo modo, as pontes, os regatos, com erva daninha em redor, podem bem ser só para olhar. O suposto saber acerca das coisas inibe que as toques sem uma escolha prévia da textura, por isso há que ressuscitar a cegueira antiga das mãos. O quadro onde te revelaste pelas cores pode ser parte do arco-íris mas é sobretudo o opaco vocabulário da tua consciência. Sobreviveste à possibilidade instante da morte porque chegaste atrasado ao encontro ou porque é inestético morrer quando ainda há muita música para ouvir. Amas os grandes espaços, os desertos de areia ou de água, porque neles se deita melhor o olhar e é morada suficiente para todos os que desejas. Invejas as noites sem lua porque assim no céu do teu corpo podes acolher ciosamente a luz das estrelas mais antigas. Beber o licor como o mar bebe o rio e sentir a ebriedade das alterosas ondas é outra forma de acolher o Inverno. Ser criança pela vida fora é uma espécie de contrafacção dos calendários, apesar da roupa nos deixar de servir. Viver só porque te comprometeste com o futuro pode ser arriscado se tens o hábito de te esquecer das horas. O melhor mesmo é ires já beijar os que regas a gotas de ternura não vão eles crescer demasiado para que lhes chegues aos lábios.

domingo, novembro 25, 2007

Das coisas com que se alimenta a alma


Hoje passei a tarde a contar gaivotas. Deve haver, certamente, coisas bem mais interessantes para fazer: passear no shopping, fazer as compras de natal, ir ao futebol, levar a família aos pastéis de Belém, beber uns copos com os amigos, ler Proust, visitar museus, enfim todas aquelas coisas que as pessoas normais fazem... Umas eram brancas, outras cinzas e outras ainda só asas contra um fundo de céu. Planam igualmente bem e simpaticamente voltavam a cabeça para baixo, na minha direcção, como se me quisessem cumprimentar. Eu, que não posso voar desde que me cortaram as asas em pequeno, gritava imitando o melhor que podia o ruído que fazem quando se juntam em animados festins. Aproveitavam a brisa e numa fila ininterrupta entre a arriba e o mar passavam mesmo à frente dos meus olhos. O mar estava tingido de um azul forte e alguns ‘carneiros’ polvilhavam-no de branco para que a monotonia não cansasse a vista. Dois ou três veleiros – como eu invejo esses felizardos! – pontuavam o horizonte. A rocha firme onde me deitei segredou-me que a terra é também um barco e, por isso, todos navegamos no mar dos mares sem outro rumo que não seja o infinito. Um corvo-marinho mergulhava como um ponto de exclamação no coração de um poema. Um gato preto pouco maior que um palmo fez sua morada o côncavo da rocha que tinha as raízes na beira-mar e de tão selvagem não deixou que o olhasse mais que breves segundos. Fechei os olhos como se quisesse fazer uma revelação interior que imprimisse nitidamente a minha memória. É bem possível que tenha adormecido como um réptil no sortilégio do meio-dia solar. Disseram-me depois que a tarde esteve fria e ventosa. Acredito. Foi por isso que escolheram o shopping para alimentar a alma...

sexta-feira, novembro 16, 2007

Viver depressa e morrer novo...


Começo a achar estranho que tudo aquilo que dá prazer tenha um custo elevado e ainda por cima a cobrar na duração da própria vida. Se acaso me maravilha filtrar a luz das estrelas pelo fumo de um inocente cigarro logo um cometa assassino me ameaça com uma suspeita trajectória para os lados da constelação de câncer; se ouso ruborizar suavemente os lábios com um néctar de causar inveja a Baco logo a imagem aterradora da águia devorando o fígado de Prometeu me surge ganhando vida no mais cristalino copo; se me deixo adornar a muitos corpos como um barco a muitos portos logo por esse rio vermelho que tão bem me conhece por dentro se insinuam os cavalos de Tróia que hão-de abrir as portas à desgraça; se permito que o paladar me conduza por varandas de delícia e labirintos que só a boca decifra logo um coração agastado me lembra que há paixões únicas e irrepetíveis. Talvez haja aqui uma questão que só Einstein nos ajude a perceber: o tempo do prazer é intenso e concentrado. Um só segundo de prazer equivale certamente a muitos anos de uma vida chata e sensaborona, e por isso morrem jovens, nos calendários newtonianos, os que da vida fizeram um palco sempre em festa!