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sexta-feira, maio 22, 2015

baco no cais

Atrás de si ficava uma estrada só de perfume e um esquecimento permanente de onde viera. Trazia na mão mais à direita um chocolate, de onde já libertara a vaca que habitualmente pasta junto à percentagem do cacau, por isso a prata estava pronta para repousar na braseira. Na superfície mais fina do olhar balançava um palhaço, um chapéu de três bicos e um urinol de barro novinho em folha. Só sabia os nomes dos pássaros do entardecer, porque nunca saía de casa com o sol a este e porque não queria acordar demasiado cedo o palhaço que trabalhava no turno da noite e só começava a sonhar quando abria a alvorada. Nunca fora a Espanha, mas sentira múltiplas vezes esse vento espesso que soava a castanholas e flamenco e empurrava para cá da fronteira chapéus de três bicos negros como a fome e a morte no choro dos contrabandistas de palavras impronunciáveis. Se os passos não o atraiçoassem, a sua vida caberia em meio século, mas esses passos de barco tempestuoso arrastavam para muito mais longe o calendário dos dias idos. Ainda bem que a memória se gastou como uma borracha se gasta ao apagar o desnecessário, o errado sem remédio, o esboço que não tem beleza nem nunca fará rir o universo. Ainda bem, pois assim podia morar em exclusividade o presente, sem raízes nem amarras, sem rumores nem remorsos, sem outros que morassem em si sem convite nem desejo, e beber, beber para ser oceano, beber desalmadamente sem suscitar cobiça, todos os mágicos líquidos que o faziam voar sobre lugares mais auspiciosos em ar e beleza por um urinol de barro novinho em folha.

quarta-feira, maio 06, 2015

Estrela do Norte

Agora, quando viajo, já não levo aquele cão que abana a cabeça a cada irregularidade da estrada, porque ficou no ford cortina com que me cruzei à saída da minha infância. Todos os ford cortina eram beges e deixavam fumo a anunciar a partida para lugares que eu invejava. Subia as persianas mal caía a noite e certificava-me que a ursa menor continuava a morar por cima do meu reino. Outros dias escondia-me para perder o norte e segurava o magnete que teimoso dizia sempre o mesmo. E é isso que acontece a quem não viaja: diz sempre o mesmo, ainda que use outras palavras. Todos adormeciam ao afinar o coração pelo relógio de parede, mas eu com olhos e eco de morcego exigia dias mais longos, porque não queria que os sonhos tivessem que obedecer a uma métrica de vida sóbria. Do lado de fora, as borboletas noturnas desciam da sua morada lunar e passavam à altura dos meus olhos e algumas aí ficaram para sempre para que os meus olhos também pudessem ser mais leves que o ar. As memórias ora são papagaios coloridos ora são corvos a debicar os dias que somos, é por isso que os mais hábeis de nós os enganam dando-lhes a memória das árvores em sementes. Das muitas viagens que nunca fiz guardo uma grande saudade, mas sei com absoluta certeza que o ford cortina bege ainda por aqui há de passar para me devolver o mundo e as palavras que não incomodam o silêncio. 

terça-feira, março 31, 2015

de areia e dos castelos

Já corri tanta praia à procura do único grão de areia que me falta e vou ter que continuar porque sem ele este castelo de tanto de tudo não se segura. Arquitetarei lugares efémeros para receber a noite com seu corcéis de sangue, enquanto os estábulos que mandei fazer em vime entrelaçado não vierem das margens de qualquer desassossegado rio. Há uma batalha à espera que alguém tenha uma vontade de morte, mas talvez a morte se canse de esperar e se faça coisa natural e suave como os fins de dia de junho quando amorna o vento e as aves são exclamações em voo dolente. Aqui deste lado, à sombra do castelo quase perfeito, vejo o mundo todo e paro sempre o olhar à tua porta grená. Esse vinho na cor embebeda-me e por isso toda a outra viagem que me obrigo a fazer é de uma violenta lucidez. Cruzo-me com raparigas magníficas de tão breves e descubro que há um pintor renascentista a desfazer-se dos amores porque lhe faltam as telas e o tempo. Os gritos das cores compõem a geometria rigorosa dos campos e o moleiro recolhe as velas porque apenas quer o assobio do vento para recitar a noite. Quando forem três horas o luar e o voo da coruja virão do mesmo lado do horizonte e um fio de frio beijar-te-á os ossos só para que saibas que estás vivo. Sobressaltos são abertos pela manhã e o dia é um limão gotejando na boca e ainda que beijes toda a água do mar e barcos de ampla vela ondeiem teus lábios só a mulher que amas saberá neutralizar a acidez do destino que não existe. Olho este relógio de dizer horas, porque não tenho os olhos dos gatos para ver as horas – como fazem os chineses -, e percebo que é quase silêncio certo neste mostrador inox que foi prenda de uma quarta classe de reis, rios, caminhos-de-ferro e alguns adjetivos superlativos. Entretanto no rendilhado da costa e no corpo oceânico o mar trabalha para que o meu castelo se cumpra. Somos mais líquidos do que sólidos e ainda assim não nos cresceram escamas em nove meses de amnióticas navegações.

sexta-feira, março 27, 2015

Meio dia absurdo ou a morte do poeta

Por entre sinos, buzinas e cornetas sem luz nem lustro o dia acabou por surgir mais curto que os outros, mas igualmente sinistro e decisivo. Amélia tinha uns pequenos laçarotes, em tom rosado ou vermelho demasiado gasto, que usava só em pensamento. Habilidade muito difundida esta de usar coisas em forma pensada. Falo de mim próprio, quando me vejo nas margens e sem fôlego para atravessar para o lado da sombra,  quando isso acontece, imagino uma árvore com uma copa saia rodada, com cigarras em dose reduzida, frutos já colhidos, e posso assim continuar num sol de 42º até haver escadas de água branca e casas de cal luminosa. Tenho mais dificuldade com as palavras do que com os lugares e, por mais que fechem as janelas e roubem os marcos geodésicos, perco-me com muito maior frequência no significado do que nas encruzilhadas por onde navego. Não preciso de relógios, bússolas e de nada me servem as estrelas porque as confundo todas numa imensa orgia de cor e de noite não vejo aqueles galos que nos telhados confidenciam para onde sopra o vento. A vida é como os chocolates é o que eu sei cada vez melhor. Os amargos são os mais saudáveis mas poucos os querem para despedir os dias. Coisas absurdas atrás de coisas absurdas acontecem se nos damos ao trabalho de estar atentos, e é talvez nestas alturas que homens de coração robusto, trabalhado em granito, descobrem que a mariquice das lágrimas liga bem com uma mini fresquinha, porque só choram quando o gás os engasga. Abro uma gaveta quando me quero aventurar num mundo novo. Debaixo da folha de papel com malmequeres miniatura que lhe forra o fundo há sempre uma carta, um postal, uma certidão de ter morrido, casado ou nascido. Em pequeno cheguei a pensar que já as vendiam assim, que só lhes acrescentavam as bolas de naftalina e o ruído da madeira seca a aninhar-se na escuridão da cômoda. Sei agora que são lugares onde se guardam os sedimentos dos dias vividos. Há um pouco de cada um de nós espalhado pelo fundo das gavetas, e hesito em chamar-lhes berço ou esquife apenas porque não sei para que lado se inclina a memória. Gostava de pensar a cores, mesmo nos dias sinistros e decisivos, porque assim podia escorregar no arco-íris sem precisar de uma licença de infância ou ter que pedir um poeta emprestado à morte.