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terça-feira, novembro 28, 2006

A uma filha do vento


Tem um olhar de veludo, um corpo franzino esculpido na fome, uma voz mansa e pouco mais, para além da miséria tão absurda onde o próprio sonho é um luxo inalcançável. Contudo, já sabe, como as crianças nunca deveriam saber, que o frio traz lâminas inclementes nas intermináveis noites de Inverno. E no desaconchego absoluto da palha, certamente, muitas foram as vezes em que mordeu os lábios para não acordar os cinco irmãos com o choro não dos olhos mas da alma. A boneca mutilada que já testemunhou noutros lugares a felicidade é agora cúmplice da longa espera de quem nada espera. Chove copiosamente deste lado do mundo e esta menina cigana que mereceria o conforto que nós esbanjamos contará a medo, com os pequenos números que sabe, cada gota de chuva que escorrendo pelo puído pano da tenda lhe escorre pelo corpo e a impede de adormecer, de esquecer, de morrer brevemente para interromper o infausto ciclo da dor. Guardo o teu sorriso sem saber a que baú assombroso o foste buscar. Guardo o brilho inocente dos teus olhos como uma dávida de ternura de quem tudo dá porque mais nada tem para dar. Mas grito a plenos pulmões a raiva e a revolta contra os deuses e os homens que se esqueceram de te amar!

Foto Erik Reis

sexta-feira, novembro 24, 2006

Quem chora as borboletas nos dias em que morrem?


De tempos a tempos vêm-me à memória as palavras da Maria Joana, a professora de português que há umas décadas atrás se cruzou no meu caminho, dizia ela que as únicas pessoas verdadeiramente livres eram os vagabundos, porque esses nada tendo nada temem perder e a liberdade é exactamente essa ausência de amarras que a posse do que quer que seja imediatamente institui. O vagabundo possui de seu os passos, os caminhos que faz ao caminhar, o ar que respira e a fome que engana com ardis de ocasião. Não é seu o brilho das estrelas, nem o luar baloiçando no rio, nem tão pouco o frio de Dezembro, embora os conheça como ninguém. Vive cada dia à vez, nada o prende ao passado e nada o chama do futuro. É inteiro porque se leva todo para onde quer que vá. Enquanto nós, arrastamos a cada passo as grilhetas dos compromissos, o medo de que nos subtraiam o que chamamos nosso, a angústia permanente de que façamos o que fizermos nunca havemos de ser suficientemente felizes. A morte assusta-nos não porque seja inevitável mas porque nos há-de separar irremediavelmente do que acumulámos com tanto esforço e obstinação. O vagabundo morre todos os dias em paz, só de si ele sentirá falta se não voltar a acordar. Quem chora as borboletas nos dias em que morrem?