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domingo, outubro 16, 2016

A música já está feita, o texto está por fazer.



A música já está feita, o texto está por fazer.
Talvez por isso escolhas essa forma de assobiar sobre o vento
Em vez de ousares aparelhar palavras que podem erguer muros e moradas
E deixar vestígios de saliva e tinta seca nas mãos cavas
E que nada apaga ainda que se tornem incómodas tatuagens na memória.
É fácil, é até sedutor, emprestar os ouvidos às mulheres que cantam
Em silêncio deixar que elas julguem a quantidade de desejo que as ouve
E que imaginem os cenários mais idílicos para compensar todos os não-dias.
As palavras podem ser melaço de cana ou uma lâmina de brilho inquieto
E algumas, labirintos em que o inclemente eco se teme mais que o Minotauro.
A música tem arestas boleadas e claves de Sol mesmo nas notas invernosas
Os violinos dão pouso aos pássaros e a flauta usa-lhes a voz emprestada
O maestro segue fiel atrás da batuta que sabe de cor todas as músicas
E até as crianças de ouvidos pequenos adormecem por Si sem Dó.
O texto desafia sem pauta a travessia branca do deserto
Exige um rio, mas não sabe apaziguar a sede
E liberta personagens que nunca mais te deixarão viver sozinho.
Alguém escreve a branco e preto neste piano que se ouve
É fim de tarde, hora profunda e um acorde solta-se ágil e completo,
Alguém, com jazz na voz, esta noite improvisará o que há de música no poema.

quinta-feira, julho 21, 2016

Ao Ruy Belo


Possivelmente ainda não chegaste, o areal está deserto e ao longe apenas gaivotas
Disseram-me que havia dias em que chegavas cedo, antes de haver luz
Que vias os pescadores, em barcos coloridos, romper as ondas enquanto acenavas
E seguias entre a tua melancolia e a espuma do mar a desaparecer no vento frio
Talvez esperasses que o poema se escrevesse no teu rasto de polvo das palavras
Ou o percebesses nítido e íntegro apurado o ouvido junto à senhora da guia 
Mas hoje, já percebi, hoje não te apetece o sal a colar os lábios nem ouvir as varinas
A noite teve muita lua, o uísque correu vagaroso e tiveste um problema com as unhas.
As algas dançam a meia água e morrem em tons castanhos, como os teus olhos
Chegou um homem descalço até aos joelhos e ameaçou o mexilhão com uma faca
Hesito em dizer em qual dos teus versos melhor o descreves
Porque lhe falta um saco de serapilheira para acomodar o destino.
Irisa-se o céu do lado de onde costumas aparecer
Mas a todos os que vejo vir lhes falta o ar de poeta e de ter insónias amiúde
Terás tu deixado Vila do Conde ainda com uma garrafa em maré cheia
Ou acometido de paixão súbita enlouqueceste de novo como na primeira vez
E rumado à Consolação para te livrares das dores que dão nos ossos que há na alma?
Vou perguntar por ti no cais, antes, talvez, ao velho banheiro, mal acenda o cigarro
Todos te conhecem com o mar ao fundo, poucos te sabem pedreiro das palavras
Se acaso morreste e, por isso, te atrasaste em voltar à praia
Manda um recado pelo homem que faz bom o caminho alumiando o farol
Evito assim andar Atlântico acima Atlântico abaixo para te dar um abraço
Dar to ei em qualquer lugar onde leia os teus versos que me inquietaram a vida.

quinta-feira, março 24, 2016

poesia-me...

É sábado e não sei o que é feito do contador dos dias
As árvores estão quietas sobre raízes quietas sob nuvens desfeitas
À distância formam-se as palavras no recorte dos lábios e soam
Mulheres e crianças caminham enquanto crescem
Um cão sobe pelo passado e é quase lobo
Numa mesa decide-se o teu futuro entornando-o.
Sempre me disseram que os sábados são rápidos de viver
E ainda que os sonhos durem as primeiras horas
Geralmente não sobrevivem à luz desmedida com que te acordam
Nem ao excesso de picante com que condimentam a realidade
Mas, ainda assim, os amantes florescem ao fim de semana
E dois em cada três admitem ter gemido de prazer autêntico.
Os sábados são os dias em que ninguém quer morrer
Porque as coletividades estão cheias e os bilhetes pagos
E irrita interromper uma dança para varrer folhas,
Ou defumar de eucalipto a mágoa e a saudade.
É preferível  amanhar as criancinhas, enlaçar-lhes cabelo e voz
E descer aos rios que só existem para as entreter,
Com gaivotas que são balões de gás mais baratos,
E peixes que saltam para lacrimejar nos círculos de azul onde se escondem.
Os sábados, mesmo os mais cinzentos, têm sempre enormes janelas abertas.
Os escravos vão à missa e são voluptuosas todas as mulheres livres
Que nos jardins consideram usar cores extra e perfumes de  Marrakesh.
Estes são os dias de aventura e risco e de abocanhar a vida
Porque nos domingos o trapézio está preso no lado obscuro da lua
E as lantejoulas emudecem nas gavetas entre mofo e bichos do pó.
Os sábados antigos eram generosos com os magalas e as sopeiras
Davam nós nas mãos, beijos clandestinos e faziam filhos em pensões baratas
E as meninas de família nesses dias invejavam quem urgentemente se amava
Enquanto elas com o cio amarrado ao corpo se mortificavam em ânsias e suspiros
E pecados mortais atrás de pecados mortais de tantos desejos atirados para o futuro.
A família fazia dos sábados um restaurante de apaziguar ódios
Distribuíam gratuitamente um enorme sortido de beijos de judas
E no fim contavam as facas e as feridas abertas.
Nos sábados por impositivo legal nunca chovia
Ninguém vestia fatos usados nem punha ouro a fingir
Nem lamentava amar o mesmo homem durante décadas.
Aos sábados são permitidos todos os excessos que dão asas
E usar beijos e festas acintosas acima da cintura para depois levantar voo no corpo todo.
Aos sábados há futebol e outras perdas de memória
Os filhos saem pela primeira vez para se embebedarem
E a vizinha do lado aspira-nos o sono mal rompe a madrugada
No sábado dispensamos o sossego e outras coisas inúteis
E todos acreditamos na imortalidade até segunda-feira…

sexta-feira, março 18, 2016

contaminar os dias

















O meu mundo é o que digo
e as muitas vezes em que silencio o que me vai algures no corpo todo,
é uma vontade irracional de desejar ser mais que só palavras,
mas fico sempre aquém numa margem indefinida
entre rios e marés de torpor e sombra
e mais que tudo as máscaras que não sei como tirar de cima
não dos ombros que as palavras são ligeiras
mesmo quando fervem na língua
e me deixam ferido para não ter que dizer nada,
mas nada é o mesmo que tudo
quando se perde o pé e as mais felizes horas são essas em que olho o mar em             suspenso,
como se a raiz dos dias se tivesse levantado para dizer o nome das coisas
e são ásperos os nomes das coisas que não consigo guardar,
que não consigo acoitar no meio do peito fechado
com sete ou mil e duzentos cadeados de aço e fogo
mesmo que não os consiga contar a todos,
mesmo que as garras do destino
que não acredito que tenha garras me levante do chão
me lance pelas janelas
que todos os precipícios têm para quem chega desconfiado
ou com medo das alturas
e eu creio que chego sempre com medo a todos os lados
ainda que não saiba que altura tenho
e se os dedos que começo a saber contar
poderiam contar para outra coisa
que não este miserável ofício de serem sempre apontadores de infortúnios vários
e ainda assim contínuo a sorrir
a forçar estes músculos manhosos todos os dias
todos os santos e infernais dias eu continuo a mostrar a língua
que me sai do interior mais oculto como se nada fosse
ou como se fosse tudo e mais um outro universo de coisas raras
deixo de lado os simples caminhos que não me levam onde quero
eu que gostaria de estar em todos os lugares ao mesmo tempo
a mim nunca me bastou a ubiquidade
isso sempre fui capaz de fazer sem esforço
o que eu queria, mas queria mesmo, era ser uma espécie de deus
que sem fazer nada de especial, só porque é deus, consegue esse - pasme-se - sortilégio
de estar em todos os lados sem esforço, sem nada de especial, apenas sabe de tudo,
tudo guia, tudo reconhece, porque testemunha de tudo aquilo que respiras
e não se cansa de te destruir o que querias que fosse tão íntimo
que em absoluto nem tu próprio tinhas memória fiel de ter acontecido
sempre há deuses com sorte
sobretudo quando despes a pele e no lugar de ti surge a maresia azul de contaminar os dias.