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segunda-feira, novembro 22, 2010

a minha mãe

Sei-me na imagem da árvore a quem insensivelmente secaram o que restava da raiz. Sei que já não resistirei com o mesmo vigor aos inclementes vendavais que assolam a alma e alquebram o corpo. Sei que já por mim não velam nem esperam os mesmos braços e o terno colo onde aprendi a dormir em sossego. Sei que adormeceste e no sonho derradeiro moraram os que amaste acima de tudo. Sei que, enquanto houver memória, beijarei o teu rosto e ouvirei os teus sensatos conselhos todas os dias... Sei que uma mãe nunca morre, apenas se esconde para se alegrar a ver-nos voar sozinhos...

segunda-feira, julho 05, 2010

my friend


My friend sabe mais da pesca do que muitos alguma vez saberão acerca da vida. É um verdadeiro filósofo crestado pelo sol de uma Lisboa inclemente, não pelo calor, mas pelo desabrigo que dá a alguns dos seus… Pensa cada pormenor antes de escolher o fio, o tipo de empate, o anzol, a chumbada e a altura das marés.
Ele é que nem sempre está de maré, nem sempre peixe decente se deixa tentar pelo suculento anelídeo, e então só resta o refugo, a miséria que flutua. Nessas alturas, a água corre pardacenta, o vento é inelutavelmente frio, e as sombras descem as colinas para cobrirem o Tejo.
De longe, da babilónia dos desalojados da sorte, chegam-lhe os amigos para ouvir as argutas dissertações, para partilhar um não destino, para revender um Tejo tinto, para olhar e aprender as técnicas de parecer feliz. Mas tem filhos que se perderam entre a Ponta dos Corvos e a Baía do Seixal, ou noutro recanto espraiado do Tejo, numa maré de azar tudo foi ter ao mar do esquecimento. Antes assim, dirá num estoicismo inevitável, não preciso de ninguém nem quero que ninguém precise de mim.
A desgraça é maior quando o dinheiro investido não produz nenhum bem, quando as águas correm depressa de mais para que o peixe se deixe ficar por ali a olhar Lisboa, e por engano se deixa enganar. Nesses dias longos, de horas feitas de segundos sólidos como alfinetes a lavrar a pele, valem todas as vociferações contra deus e o diabo, contra os políticos sem vergonha e com vergonha, contra os amigos e os inimigos. É preciso dizer mal de alguma coisa, “dizer mal” é o remédio mais antigo para não se olhar para dentro.
No fim a estratégia de recurso, o kit de salvação, o grau zero do pescador: apanham-se as tainhas. Cegas e prenhas de merda. Mas se lhe esquecer a cabeça e as barrigas talvez engane o estômago, engane a dignidade, engane a corvina que lhe morou o sonho nessa noite e noutras noites todas iguais. Mas mais difíceis que os sonhos e as noites são os dias de obsidiante sobriedade em que tudo teima em ser tão nítido e quanto mais nítido mais obscenamente doloroso. As caravelas do absurdo já não partem: fundeiam no próprio Tejo!

quinta-feira, julho 01, 2010

do inverno e da saudade


Começou o inverno: a saudade é fria e chuvosa e dias há em que enregela a parte mais habitável da alma.
Teremos colhido nas palavras, ou suspeitado apenas, a sua seiva doce, a sua entoação reticulada, a música das vogais mudas, aquilo que elas nunca saberão dizer, porque só pode ser dito não se dizendo…
É estranho este caminho pelo passeio dos instantes quando abre para paisagens que já floriram antes de chegarmos. Que não aguardaram que o nosso sopro levasse o pólen, as sementes e o nome provável do que há-de germinar.
Não há quem fique a segurar o sorriso, como uma janela aberta, como um convite, como um fio de seda, como um cálice de memória, apenas a sombra do que nunca foi alimentado pelo Sol e nunca sentiu a vertigem de ser maior sem tamanho.
Ainda podia falar do cuidado, da fragilidade das asas das borboletas, do cristal que alguns olhos emitam, e do adormecer a contar os segundos fora das horas onde se acordam as pessoas doces de dizer. Mas quem arrisca, quem desce ao chão mesmo da raiz, à nascente para perceber a foz, ao silêncio para perceber a fecundidade da música, à dúvida para nunca mais acreditar nas certezas.
Creio que são os grilos que desafiando a noite me entram pela alma e por qualquer estranha e desconhecida harmonia me convidam a cantar às estrelas, talvez aproveite e cante também aos que apesar da usura do tempo nunca esquecerei…

domingo, março 14, 2010

mãe-mar


Estar com a mãe é outra forma de ver o mar: o regresso mudamente desejado às águas primordiais! Elas são de um azul variegado da ternura à cólera, numa mesma maré e muitas vezes numa mesma vaga, o barco é colo e logo de seguida um anzol que nos recolhe para dentro da memória que não nos deixam esquecer. A mãe é uma rede cuja malha teceremos envergonhando Minerva e a cada dia que subtraímos ao calendário a malha há-de apertar-nos cada vez mais até ao nó górdio da leveza decisiva.
Estar com a mãe é outra forma de ver o mar: as mãos peixes voadores e os cabelos sargaços que nos fertilizaram o sonho e o sono. Às vezes entram por o mar adentro porque anteciparam o nosso naufrágio, outras assistem do mais alto promontório à nossa bolina desajeitada. Transformam-se, quase sempre, em faróis e é então que mesmo na mais feroz tormenta uma luz ainda que ténue e distante sempre nos aponta o exacto caminho do regresso a casa.