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quarta-feira, maio 06, 2020

das estevas


De longe a longe regresso aos cheiros da infância. O resto praticamente não existe. E os cheiros perduram porque ninguém arranca todas as estevas, ou impede que o vento sopre quando quer soprar. Se eu apenas voltasse para rever o que resta de memória visual rapidamente me sentiria perdido, estrangeiro do passado dentro de mim mesmo.

Os meus agostos eram grandes e cheios de aventuras. As velhas, que só o eram porque eu era menino, sentavam-se à porta ao fresco enquanto os paralelos da calçada ainda tinham um resto de sol a arder por dentro, e nós corríamos arrastando o luar e algumas das estrelas mais frágeis. O chico carrão e o palheiro onde não havia agulha que escapasse, o zé corneta e as primeiras lições de bem acertar com qualquer fisga, o bonifácio e o ciúme por uma avó partilhada, a maria joaquina e o jogo do lenço, e com todos eles joguei às escondidas, e tanto joguei que os fui perdendo, escondidos que foram ficando em algum lugar algures no tempo.

Gostaria de ter daquelas memórias fabulosas que tudo guardam, que nunca se confundem e que servem de abrigo a histórias sem fim. Mas, de facto, não fui prendado com esse inestimável atributo. Sensatamente devia habitar em exclusivo o presente, contudo arrisco regressar ao passado e talvez a única vantagem deste frágil arquivista esteja na necessidade de inventar, imaginar, completar os pequenos e sincopados episódios que me ocorrem depois de um esforço insano. À falta de testemunhos fidedignos, tudo o que disser é verdade.

As carroças serviam de esconderijo. Por entre os varais e as enormes rodas, onde a madeira e o ferro se afeiçoavam na perfeição, furtávamo-nos ao olhar indiscreto de quem nos perseguia. As cadeiras de palhinha, um ou outro mocho, um oleado de tapar a cal ou as melancias, davam vida e cor à rua até perder de vista. Os nossos gritos de total alegria não confundiam as conversas dos mais velhos e ninguém se amofinava se os excessos fossem repreendidos com a severidade merecida.

O alcatrão aos poucos ia arrefecendo, solidificando de novo e uma vez mais, enquanto os esparsos candeeiros alimentavam de luz miríades de seres mais leves que o ar. Algumas dessas noites de agosto eram gémeas das noites do deserto e só assim era possível sobreviver ao inclemente estio diurno. O céu, esse magnífico lugar sem fundo, era uma sinfonia de cor e todos os naipes afinavam para que a via láctea e estrada de santiago tocassem em uníssono. Os gatos, todos pardos como convém, observavam-nos com inveja de cima dos telhados e as osgas de olhos esbugalhados aprisionavam no arredondado da língua as melgas antes que estas nos infetassem o sangue. Numa ou outra noite, algumas garrafas de pirolitos da tia maria amélia eram sacrificadas, sendo decapitadas à altura do gargalo para resgatar o esplendoroso berlinde, qual mago liberto definitivamente do presidio da lâmpada.

A recolha era sempre depois dos avisos mais ásperos. Que desperdício ter que adiar a vida por tantas horas. Beijos, abraços e juras de amizade, para sobreviver a uma noite de separação, era um ritual obrigatório. Sei, embora nenhum me tenha dito, que todos sonhávamos o mesmo sonho. E continuo a saber, embora alguns já não o possam confirmar, porque entretanto se completaram e morreram, que quando mais longe essas noites estão mais nítidas e essenciais elas são. É a brisa suave e única dessas noites que procuro quando abro a janela e as estevas me fazem sentir sem tempo.

sábado, maio 02, 2020

memória de adriano


Curiosamente não as vejo perder o viço da cor acabada de pintar, no entanto, o artista, crestado dos dias carregados de sol, é cada vez mais castanho. Apenas uma ligeira linha branca na testa assinala onde termina a sombra protetora do barato chapéu de palha e recomeça a cor antiga.

Aguarelas de Lisboa num humilde escaparate voltado de costas para a foz do Tejo competem com o vivo olhar. Entre o real e a representação, apesar do esforço do artista, poucos são os que se deixam seduzir por sofrível arte. Deviam esmaecer, ganhar o tom que anuncia o fogo já cinza, mas não. O elétrico continua em movimento no seu amarelo forte, o cavalo da estátua brilha à altura da crina no seu imponente bronze, o busto do poeta ofusca na sua marmórea brancura, o rio corre em forma de inverno no seu azulão de nuvens. Tudo cheira a tinta recente em antiga imagem. A memória não é muito exigente, mas a recordação sim.

No intervalo dos dias iguais, desce os degraus e na humidade que sobe do Tejo já mar, arremessa restos de pão às gaivotas que se renderam à terra. Gostava de saber o que se passa no íntimo de um animal que podendo voar para onde o ar é leve e puro, prefere esperar por migalhas de asas caídas. Ou no coração de um homem que, podendo caminhar sem fronteira nem destino, fixa, temeroso, raízes contra as tentações.

As pessoas chegam em contínuo. Mulheres exóticas molham os pés cansados e esquecem o corpo no calcário cais. Homens de vozes e feições estranhas treinam o ver à distância entre margens. As crianças chapinham felizes porque não têm os pés cansados e podem olhar sem compromisso a espuma e outras coisas efémeras. Entre luas as águas arredondam as arestas. Entre sóis as lajes riscam em surdina o nome dos que passam.

Dos arrebatadores beijos, tentativa frustre de devorar a alma, até ao choro do amargo desespero, capaz de altear o Tejo sobre o Bugio, lá onde o rio e o mar se confundem no doce e no sal, nesse palco, tendo por espectadores indefectíveis o vento, a água e a distância, o mundo todo desagua em babel festim, enquanto um estrangeiro de si mesmo, ilude o tempo entre marés e malte, aguardando que uma duvidosa aguarela valha um dia de cada vez.