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segunda-feira, outubro 27, 2014

a bailarina

Para que se saiba, ou para que apenas fique registado, independentemente de se vir a saber ou de, sequer, interessar a alguém, vou contar a história da bailarina que caiu em desgraça e acabou a dançar ao sol e para outras estrelas de menor importância.                                                   
Não muito longe no tempo, mesmo sem saber se é ele que passa ou se somos nós que passamos e, deste modo, fazemos o tempo, uma jovem de tamanha leveza, que inúmeras vezes se confundiu com uma ave, vivia no auge de toda sua magnificência, abundava a força, a vitalidade, a beleza, o arrojo, o desprendimento por tudo o que fosse além do fruir o imediato. Esta rapariga, passado que foi o tempo próprio de o ser, logo depois mulher, tinha tudo de que é feito a riqueza, mesmo aquela riqueza que se vê no que se possui por mero capricho ou ostentação, coisas pequenas a que nenhum ser humano escapa, por mais perfeita e bem acabada que seja a obra... Ora, alguém assim, imagina-se imortal em demasiados momentos para ser verdade, mas dificilmente aceita que isso seja miragem, ou coisa impossível de mais para ser parte da realidade. E, quando essa sensação de imortalidade se apossa de alguém, a única modalidade de acontecimentos que a trará de novo ao reino dos simples mortais é aquela que fala das grandes desgraças, das hecatombes que fazem eco e permanecem arrastando-se por muito tempo.

Todos os palcos se renderam ao seu encanto, à magia com que riscava figuras no espaço, figuras que passariam a viver para sempre na memória dos que felizes a viam nesses momentos fugazes de que se faz a eternidade. Teve amantes demorados e de corpo inteiro e outros que no instante seguinte fugiram para não cair no abismo da perdição. Teve promessas de enlouquecer só por uma única dança e dançou algumas para satisfazer a sua perfídia e outras para desgraçar propositadamente a sua pífia educação católica. Teve a aura do sucesso que lhe abriu as portas mais difíceis e a guindou aos concorridos lugares da fama. Teve dias sem calendário e noites longas de mais para caberem em palavras.

Os seus movimentos eram graciosos por natureza e, por isso, pouco esforço dedicava ao treino do corpo. Tudo em si fluía como se só assim pudesse ser. Todos os outros camaradas de companhia sofriam as agruras das longas horas a tentar domar o corpo e a suportar a dor de exigir de um humano tarefas sobre-humanas. A inveja mascarava-se nos curtos sorrisos e na raiva interior. Ninguém consegue perceber porque o destino escolhe sempre os outros para brilhar e nos reserva uma tíbia luz que nem nas trevas mais pesadas alumia rosto inteiro.

Mas o deslumbramento!… Muitos nos esquecemos daquilo que o deslumbramento é capaz de trazer e já muito longe e alto na queda vai Ícaro para ainda haver memória bastante; e Narciso também já demasiadas vezes viu o inverno destruir-lhe o esplendor e a beleza, que a primavera paciente recompõe uma e outra vez, para que ainda haja quem recorde a sua insana sina. Se a nossa bailarina apenas suspeitasse que arrastamos, da mesma forma que os cometas o fazem com a cauda, todo e cada gesto, toda e cada decisão, todo e cada instante de estarmos vivos – porque é esse o preço de estar vivo! – talvez desenhasse ainda passos noutros palco e percorresse outras inflexões musicais… Mas, se assim fosse, ou tivesse sido, nunca eu a teria visto bailar como as aves do paraíso num cais que é o palco do Tejo, e isso seria desequilibrar o universo das memórias que contam.

A perdição ou a salvação de uma vida, que é única e vivida sem mestre nem livro de instruções ou possibilidade de apagar e reescrever, chega de muitas e variadas formas e talvez apenas o poeta e a bailarina tenham percebido o que nela verdadeiramente se joga, e só eles possam afirmar de forma absolutamente autêntica: «Mais qu’importe l’éternité de la damnation à qui a trouvé dans une seconde l’infini de la jouissance?»