De
longe a longe regresso aos cheiros da infância. O resto praticamente não
existe. E os cheiros perduram porque ninguém arranca todas as estevas, ou
impede que o vento sopre quando quer soprar. Se eu apenas voltasse para rever o
que resta de memória visual rapidamente me sentiria perdido, estrangeiro do passado dentro
de mim mesmo.
Os
meus agostos eram grandes e cheios de aventuras. As velhas, que só o eram porque
eu era menino, sentavam-se à porta ao fresco enquanto os paralelos da calçada ainda
tinham um resto de sol a arder por dentro, e nós corríamos arrastando o luar e
algumas das estrelas mais frágeis. O chico carrão e o palheiro onde não havia
agulha que escapasse, o zé corneta e as primeiras lições de bem acertar com
qualquer fisga, o bonifácio e o ciúme por uma avó partilhada, a maria joaquina e
o jogo do lenço, e com todos eles joguei às escondidas, e tanto joguei que os
fui perdendo, escondidos que foram ficando em algum lugar algures no tempo.
Gostaria
de ter daquelas memórias fabulosas que tudo guardam, que nunca se confundem e
que servem de abrigo a histórias sem fim. Mas, de facto, não fui prendado com
esse inestimável atributo. Sensatamente devia habitar em exclusivo o presente,
contudo arrisco regressar ao passado e talvez a única vantagem deste frágil
arquivista esteja na necessidade de inventar, imaginar, completar os pequenos e
sincopados episódios que me ocorrem depois de um esforço insano. À falta de
testemunhos fidedignos, tudo o que disser é verdade.
As
carroças serviam de esconderijo. Por entre os varais e as enormes rodas, onde a
madeira e o ferro se afeiçoavam na perfeição, furtávamo-nos ao olhar indiscreto
de quem nos perseguia. As cadeiras de palhinha, um ou outro mocho, um oleado de
tapar a cal ou as melancias, davam vida e cor à rua até perder de vista. Os
nossos gritos de total alegria não confundiam as conversas dos mais velhos e
ninguém se amofinava se os excessos fossem repreendidos com a severidade
merecida.
O
alcatrão aos poucos ia arrefecendo, solidificando de novo e uma vez mais, enquanto
os esparsos candeeiros alimentavam de luz miríades de seres mais leves que o ar.
Algumas dessas noites de agosto eram gémeas das noites do deserto e só assim era
possível sobreviver ao inclemente estio diurno. O céu, esse magnífico lugar sem
fundo, era uma sinfonia de cor e todos os naipes afinavam para que a via láctea
e estrada de santiago tocassem em uníssono. Os gatos, todos pardos como convém,
observavam-nos com inveja de cima dos telhados e as osgas de olhos esbugalhados
aprisionavam no arredondado da língua as melgas antes que estas nos infetassem
o sangue. Numa ou outra noite, algumas garrafas de pirolitos da tia maria
amélia eram sacrificadas, sendo decapitadas à altura do gargalo para resgatar o
esplendoroso berlinde, qual mago liberto definitivamente do presidio da
lâmpada.
A
recolha era sempre depois dos avisos mais ásperos. Que desperdício ter que
adiar a vida por tantas horas. Beijos, abraços e juras de amizade, para sobreviver
a uma noite de separação, era um ritual obrigatório. Sei, embora nenhum me tenha dito, que todos sonhávamos o mesmo sonho. E continuo a saber, embora alguns já
não o possam confirmar, porque entretanto se completaram e morreram, que quando
mais longe essas noites estão mais nítidas e essenciais elas são. É a brisa
suave e única dessas noites que procuro quando abro a janela e as estevas me
fazem sentir sem tempo.