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sexta-feira, fevereiro 01, 2019

A senhora x



A senhora x levantou-se, ouvindo o mesmo relógio dos outros dias. Apesar de ser sábado era como se um ritmo antigo, um misto de relógio de sol, estrelas e lua, demasiado antigo para ser alterado lhe falasse ao ouvido dizendo que era tempo de retomar o movimento do corpo. As molas do colchão, com a memória de antigas batalhas, ecoaram nas paredes, resvalaram no terço de cortiça e abafaram-se no cortinado desbotado. Tacteou as pantufas, meteu os ombros dentro do robe e abriu a porta da cozinha. O malhado, companheiro felino, ronronou mas não desviou os olhos abertos sobre o parapeito que esperavam o sol. Aqueceu o resto do café com leite da véspera e antes de pôr a dentadura amoleceu o pedaço de pão para enganar a fome. As janelas do prédio em frente estavam ainda tomadas pela sombra, a roupa nos estendais fazia lembrar um desfile de veleiros engalanados. Nos vidros escorriam gotas de orvalho que daí a pouco o calor do sol haveria de lamber. A casa estava fria. De forma mais precisa: silenciosa e fria, como se uma qualidade não pudesse existir sem a outra. A casa de banho estava, havia muito, a pedir umas pinceladas para esconder o caruncho recorrente. A torneira jorrou água fria em abundância e a concha das mãos levou-a aos olhos. A saia azul escura, já fora mais escura, agora ganhava um luzido herdado do uso repetido. As meias de vidro cobriam-lhe as varizes e faziam sobressair o vinco dos ossos. O soutien apertava-lhe o peito e a alma e simulavam uma orografia há muito perdida. A escova do cabelo descia repetidamente até aos ombros, numa espécie de ritmo encantatório. Brancos e cada vez menos eram os cabelos que via no espelho e estes enquadravam as rugas que não só a idade mas o trabalho e o sofrimento tinham esculpido impiedosamente. Doeram-lhe os pés quando tentou enganá-los com os sapatos que a dona Teresa lhe havia dado. Mas eram uns sapatos bonitos, com dois botões de cada lado e com o espaço para os joanetes já moldado. Talvez a cor creme não ficasse muito bem com a mala verde que comprara nos chineses, mas não se podia dar ao luxo de recusar oferendas. Até porque a dona Teresa lhe dissera que aqueles sapatos tinham custado uma fortuna há cinco anos atrás. E a cavalo dado não se olha o dente, sobretudo se não vier descalço. Desceu as escadas e entrou na rua. Eram poucas as pessoas que arriscavam começar a viver tão cedo ao sábado e os que o faziam era quase todos seus conhecidos. O Francisco, o leiteiro, a Mariana que fazia a limpeza no teatro Morgado, a D. Iria que vinha passear os dois cachorros e mais uns quantos sem rosto, porque não lhes sabia o nome. Caminhou do lado esquerdo da rua, evitando os carros que escondiam o passeio, contornou o miradouro da penitência e entreviu os telhados das casas rompendo a neblina. Estavam duas pessoas na paragem do eléctrico. A senhora Garcês, das poucas que antes de si já usavam aquele eléctrico e que era pessoa de poucas falas, sobretudo desde que ficara viúva, embora não recusasse e retribuísse a saudação matinal, e um senhor de meia idade que nunca vira por aquelas bandas. Era um homem de bom porte, fato de fazenda, mala de cabedal na mão direita, e um chapéu como aqueles que usavam os gangsters. Fumava com os dois dedos da mão esquerda muito hirtos e lançava grandes baforadas de fumo que subiam primeiro numa espiral certinha e logo que era apanhado pelo vento se diluía quase que por magia. O eléctrico não demorou. Sentou-se no banco da frente, logo atrás do guarda-freio e passado pouco tempo já estava a cabecear. Ninguém lhe roubava pelo menos cinco minutos de sono no eléctrico. Eram estes cinco minutos, achava ela, que lhe serviam para fazer as pazes com a vida. Abriu as portas do prédio. Um prédio antigo com grandes portadas e umas escadas de madeira quase tão gastas quanto íngremes. Sentiu a respiração mais forte e o coração mais vigoroso na batida. Apoiou-se no corrimão e continuou a subir até ao terceiro andar. Cheirava a mofo na escadas. Talvez fosse da humidade que nos dias de mais chuva escorria da clarabóia para as paredes e que alimentava assim lentamente a degradação dos degraus de madeira mais que centenária. O escritório que todos dias limpava, à excepção de domingo, era de uma empresa de transportes. O senhor Antunes, o patrão velho, era uma pessoa austera mas simpática, já o filho, o doutor Rodrigo, era arrogante e tratava todos os empregados pouco melhor que escravos. Ainda bem que ela quase o não via. Também quando o via, mesmo que se cruzasse com ele, nunca foi capaz de um simples bom dia ou boa tarde, era como se ela fosse transparente, ou tão insignificante que nem de uma simples palavra de saudação fosse merecedora. Chegou a rogar-lhe uma praga quando o ouviu despedir aos insultos o Américo que já lá trabalhava há mais de dez anos. Não sabia contudo se a praga se havia consumado ou não. Não tinha tido o prazer de o ver agarrado à barriga a uivar como os cães por querer e não conseguir aliviar a natureza. Mas deus não dorme, era o que sempre dizia. Este era o lema que aplicava sempre que presenciava qualquer forma de injustiça. Embora muitas vezes fosse obrigada, de forma pouco católica, a admitir que ele pode não dormir, mas lá que anda muito distraído, lá isso anda e ninguém tem dúvidas. Limpou tudo com o cuidado habitual e sentou-se cinco minutos a olhar pela janela enquanto recuperava o fôlego. Fechou a porta à chave e desceu as escadas cada vez mais íngremes. Começou a caminhar sem destino certo. Ninguém, a não ser o malhado, esperava por ela, por isso podia-se dar ao luxo de caminhar e olhar as montras com o detalhe de quem um dia talvez venha a comprar tudo que aí está exposto. Havia agora mais gente na cidade, gente apressada, gente distraída, gente que já não é gente, e até polícias. Do outro lado do largo viu o supermercado a abrir as portas. Pensou no que precisava de comprar se tivesse dinheiro. Era, aliás, um exercício repetido para não perder o conhecimento das coisas que é possível comprar; fazia mesmo visitas a esses lugares, como se se tratasse de uma visita de estudo. E foi isso que lhe apeteceu fazer nesse preciso momento. Atravessou por entre os pombos que esticavam e encolhiam as asas como se as quisessem treinar para voos mais altos, olhou a gente que já quase não é gente, que dormia aos pés da estátua e contornou a carripana do almeida que varria pérolas de pó, pois abanava a vassoura acima da cabeça. Entrou no supermercado. Longas avenidas de cor. Tanta coisa a luzir pelos corredores. Percorreu demoradamente com um cesto teimando em estar vazio as estantes onde outros gulosamente retiravam o desejo e não a necessidade. Às vezes chegava a rir da gula dos que por ali passeavam: um carro apinhado, às vezes mesmo dois carros, e não se tratava de nenhum comandante a comprar comida para um batalhão. Eram pessoas que se tratam da melancolia nas compras... O supermercado começava agora a fervilhar de vida. Era a altura ideal para a sua visita favorita. Abeirou-se do longo corrimão de cosméticos e como alguém com grande entendimento na matéria olhou demoradamente o frasco, fingiu ler o rótulo, agitou para ver a limpidez e a robustez da cor, e, enquanto um olhar lateral a protegia dos olhares avaros, aspergiu demoradamente o peito gasto e suado. Deu dois passos laterais e, com a mesma sequência de gestos, aspergiu outro com a mesma veemência, um terceiro, possivelmente um quarto e talvez no fim tenha mesmo conseguido afogar perfumadamente a solidão. Isso já não sei, porque aquilo que narrador viu, com os olhos e não com a imaginação, foi a senhora x no supermercado numa manhã de sábado, visitando um a um os perfumes expostos, tudo o resto é ficção, menos o desejo que a alma lhe tenha ficado, mercê esse gesto, também ela mais aconchegada e perfumada.


terça-feira, janeiro 01, 2019

Amêijoa em tons vermelhos...


Ao fim de incontáveis horas de balanços, muitos mais do que alguma vez um colo lhes tenha dado, retornam a terra.
Falam alto, como se quisessem ouvir-se acima das ondas, desse ruído permanente para ouvidos que perderam aos poucos a poesia e a música tão do agrado dos visitantes ocasionais. Não há nomes, apenas designações úteis de modo a não comprometer, esse é o jogo. E há um gosto, quase infantil, de intimidar, de veladamente inventar uma vida marginal. A dureza, a virilidade, a masculinidade, é avaliada pelo confronto com a autoridade, um homem para ser homem tem que ter batido, ameaçado, ou chamado nomes (mesmo que entre dentes) a um bófia. Só assim merece ser homem, só assim merece respeito, só assim pode amedrontar os forasteiros vindos de longe, dos lugares da legalidade, onde habitam os domesticados, os que nunca insultaram um único bófia que fosse...
Todos estiveram presos, todos saíram na semana passada, os menos afortunados saíram ontem. Hoje ganharam duzentos euros, hoje ganharam tanto que talvez possam comprar uma gaja, uma bebedeira, uma viagem vertiginosa, dificilmente uma felicidade ancorada.
De cócoras escolhem as pedras que se entremearam na amêijoa. São negras as pedras e a amêijoa, são negras as mãos, os rostos, e o sorriso para lá caminha. A vida aqui é dura e pouco extensa. Contam-se pelos dedos os que passado o meio século ainda arrastam o aparelho. Este precisa de braços fortes, este alimenta-se de braços fortes que aos poucos ali vão deixando o músculo e o nervo.
Quando a fibra já não permite viagem rentável, ficam na praia olhando o rio e o perfil longínquo da cidade, ajudam a puxar o barco, a carregar um saco para se dizerem vivos, e partilham as memórias com os que pisam o areal. Há sempre um barco que precisa de afagos de nova pintura, há sempre uma cerveja que precisa de ser bebida, há sempre uma conversa que ficou de ontem, e há sempre que arejar o olhar para o recolher nas tempestades.
Habitualmente de poucas palavras, mas quando se entusiasmam deixam numa conversa a vida toda. Dos filhos, das mulheres, das desgraças, dos sonhos, das vitórias, da guerra, da vida toda nesse lugar, tudo se diz numa vertigem de quem sabe que pode não haver outra maré e se houver nada nos garante que será propícia a navegações.
O rio corre para a foz e afaga o ventre prenhe dos pequenos barcos vermelhos. As sombras dão lugar ao festim de luzes. A cidade deita-se na margem como uma serpente.
Algumas amêijoas não sabem que esta será a sua última noite morada no rio, amanhã umas mãos calejadas as separarão das pedras e, por uma estranha magia, as transmutarão em euros, amores fortes, francos e fátuos e numa interminável gama de anestésicos em um qualquer porto-bar da Trafaria.