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terça-feira, janeiro 01, 2019

Amêijoa em tons vermelhos...


Ao fim de incontáveis horas de balanços, muitos mais do que alguma vez um colo lhes tenha dado, retornam a terra.
Falam alto, como se quisessem ouvir-se acima das ondas, desse ruído permanente para ouvidos que perderam aos poucos a poesia e a música tão do agrado dos visitantes ocasionais. Não há nomes, apenas designações úteis de modo a não comprometer, esse é o jogo. E há um gosto, quase infantil, de intimidar, de veladamente inventar uma vida marginal. A dureza, a virilidade, a masculinidade, é avaliada pelo confronto com a autoridade, um homem para ser homem tem que ter batido, ameaçado, ou chamado nomes (mesmo que entre dentes) a um bófia. Só assim merece ser homem, só assim merece respeito, só assim pode amedrontar os forasteiros vindos de longe, dos lugares da legalidade, onde habitam os domesticados, os que nunca insultaram um único bófia que fosse...
Todos estiveram presos, todos saíram na semana passada, os menos afortunados saíram ontem. Hoje ganharam duzentos euros, hoje ganharam tanto que talvez possam comprar uma gaja, uma bebedeira, uma viagem vertiginosa, dificilmente uma felicidade ancorada.
De cócoras escolhem as pedras que se entremearam na amêijoa. São negras as pedras e a amêijoa, são negras as mãos, os rostos, e o sorriso para lá caminha. A vida aqui é dura e pouco extensa. Contam-se pelos dedos os que passado o meio século ainda arrastam o aparelho. Este precisa de braços fortes, este alimenta-se de braços fortes que aos poucos ali vão deixando o músculo e o nervo.
Quando a fibra já não permite viagem rentável, ficam na praia olhando o rio e o perfil longínquo da cidade, ajudam a puxar o barco, a carregar um saco para se dizerem vivos, e partilham as memórias com os que pisam o areal. Há sempre um barco que precisa de afagos de nova pintura, há sempre uma cerveja que precisa de ser bebida, há sempre uma conversa que ficou de ontem, e há sempre que arejar o olhar para o recolher nas tempestades.
Habitualmente de poucas palavras, mas quando se entusiasmam deixam numa conversa a vida toda. Dos filhos, das mulheres, das desgraças, dos sonhos, das vitórias, da guerra, da vida toda nesse lugar, tudo se diz numa vertigem de quem sabe que pode não haver outra maré e se houver nada nos garante que será propícia a navegações.
O rio corre para a foz e afaga o ventre prenhe dos pequenos barcos vermelhos. As sombras dão lugar ao festim de luzes. A cidade deita-se na margem como uma serpente.
Algumas amêijoas não sabem que esta será a sua última noite morada no rio, amanhã umas mãos calejadas as separarão das pedras e, por uma estranha magia, as transmutarão em euros, amores fortes, francos e fátuos e numa interminável gama de anestésicos em um qualquer porto-bar da Trafaria.