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terça-feira, dezembro 18, 2007

Do Alfa ao Ómega

Substituí o papel branco pela tela azul, perdi o cheiro misto intimidativo misto convidativo da tinta e adquiri este vício quase mágico de escrever com a ponta dos dedos. Modifiquei o cenário, troquei de palco, mas a representação é essencialmente a mesma: dar corpo ao que é pensado, destecer a imaginação, inventar mundos substantivamente verbais. Há uma afeição própria das palavras que não substituindo o olhar, nem o toque da carne na carne, traz em si um deleite que vai mais longe que o olhar e penetra mais fundo que a carne. A procura é a da conjugação única, do jogo harmonioso dos sons e, mais do que tudo, de dizer o inaudito. Arquitectar o sentido e morar nele como a lagarta que se fecha por dentro do próprio casulo é aquilo que se procura quando se escreve. Sublevar as regras ao dizer o futuro que se furtou ao pretérito e perseguir o belo que é sem tempo. Caminhar orientado pela língua como uma serpente e saber que o verbo é o princípio e o fim e o antes e depois da memória. São as palavras que em permanência nos acompanham e como o ar que respiramos ou o sangue que nos alimenta só nos abandonam no instante da morte. O nascimento de uma palavra é tão importante como o nascimento de uma estrela porque também ela aporta mais luz ao universo. Alguém se lembra de um único instante em que lembrando-se de si não o faça lembrando-se nas palavras? E quando o poeta diz que estão gastas as palavras não é para que outras ainda virgens de dizer pontuem os dedos, a língua e expludam radiosas no poema que nos aguarda? E quando procuramos o silêncio não será esse branco de cor que é todas as palavras? Só existe o que é dito e é por isso que só vimos o que dizemos e de nada serve dizer que as palavras são uma invenção humana quando a verdade é que foram as palavras que inventaram o homem para haver quem as dissesse, assim as palavras são gémeas do big-bang, são mãe de todos os deuses, são o caos e o cosmos e escolheram por um absoluto sortilégio a nossa boca para morar e desse modo serem beijadas cada vez que são ditas.

sábado, dezembro 15, 2007

Réptil lunar


na noite é mais nítida a voz da memória, não a perturba a cor das coisas, e assim pode falar sem o eco do azul ou reverberação do vermelho. na noite fazemos promessas tácteis e riscamos desse modo testemunhos indeléveis na pele. no negro infinito da noite ardem as estrelas e ignorando a matemática da distância viajamo-las para sossegar o olhar e é então que as formas perdem a sua angulosidade de fazer ferir e na quietude da sombra tudo se afeiçoa a tudo. na noite saboreamos avidamente tudo o que é excessivo e talvez por isso haja em nós algo de réptil lunar. na noite longa, que é metade da vida, fazemos a morada dos sonhos, abrimos vezes sem conta a porta do corpo e é por isso que é nocturna a delícia.

sexta-feira, dezembro 07, 2007

São demasiados os dias iguais...


São demasiados os dias iguais. E são esses que nos cansam e nos dobram como as árvores em que é sempre o mesmo vento a visitá-las. Somos máquinas das mesmas coisas, no mesmo sítio à mesma hora e quando avariamos substituem-nos as peças para não ofender a rotina. Começámos uma conversa quando aprendemos a falar e repetimo-la como um mantra sem que ousemos uma variação, não vá o Universo desequilibrar-se para lugares insuspeitos. Seres de vícios para evitar que assome o risco da escolha ou que alguém nos acuse de andarmos perdidos. Dias de espelhos múltiplos a simularem a profundidade do tempo e do espaço e já ninguém os estilhaça. É de mármore o coração adulto e não há ciência para reanimar as pedras. São demasiados os dias iguais para que a imaginação sobreviva a tão pobre memória...