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sábado, novembro 08, 2008

da luz e das sombras

1. Entardece: luzes longas no rumor das sombras. O ponteado das nuvens tece silhuetas e mãos de cirros que teclam um horizonte quase perfeito. É a hora mágica das gaivotas, dos que se perdem no olhar, dos ocasos iridescentes e do último suspiro solar.

2. Anoitece: alguém acende as estrelas, aguça as cintilantes pontas e afaga seios meia-lua como se dissesse boa-noite. Há uma nocturna vida que cumpre o ciclo do contra luz e explode em vivo vermelho nos olhos dos amantes e dos cães famintos. Há um manual de sobrevivência à espera em todos os jardins sobranceiros a Lisboa e os perfumes antes do orvalho.

3. Amanhece: a menina que leva beterraba para alimentar o sol está atrasada. É fria a divisão da vida dos que rangem como os eucaliptos velhos. De que brisas vieram tantas aves madrugadoras e os rios a cintilar pepitas na nudez das margens? Deixo uma harpa em bom estado, um dedo gasto das cordas, uma voz a soar a café matinal e vou-me deitar na cama de onde se levanta o dia.

quarta-feira, outubro 08, 2008

da ausência


Por muita saudade em que as abrigue, ainda assim elas apenas me acenam e logo se dissipam como poeira. Mesmo que as olhe como quem olha em ternura viva, e as ouça muitos hertz antes do que é possível, este silêncio mura-me os dias. Sinto-as nos lábios e são amoras negras e melífluas de agosto, mas também elas se desfazem se as toco. Distanciadamente, como amantes de juvenil timidez, sabemos que o outro existe mas tocar-lhe seria profanar a estátua líquida, ou tornar a poesia uma ciência exacta. Sussurro, rumorejo, cicio, e nestes gestos que também servem para respirar, nenhum som emerge da transparência, nenhum som se ergue com corpo de dizer, nenhum som se aparte da minha boca-fonte-exaurida.
Por onde correm as palavras que do sangue sei eu?

terça-feira, agosto 05, 2008

No ponteiro dos dias...


Corre um rio alterado no ponteiro dos dias e a paisagem é a memória da cor. O céu que aluguei nesta janela é a minha quota-parte de incomensurabilidade e esta palavra se não é grave é líquida para uma boca em início de anoitecer. Há dias assim, em que ao dizer as palavras elas se insinuam por sabores e nos dias irrepetíveis as palavras tem mesmo corpo e cheiro e nessa altura, nessa altura, eu mordo o silêncio e sabe-me a paixão adolescente e inalo âmbar num pescoço que é só de vento.
Corre um dia alterado no fulgor do rio apesar de longínquo o Outono dos olhos. Pergunto-me pelas veredas por onde nunca chegaste embora eu as tenha pensado para ti, pergunto-me pelo papagaio de jornal e canas que ganhou vida num cinzento de trovoada, pergunto-me pelas manhãs de bebedeira e da necessidade de enlouquecer uma noite para não enlouquecer uma vida, pergunto-me como aqui cheguei tão depressa, e se não foi culpa desse rio alterado que corre no ponteiro dos dias…

quarta-feira, junho 25, 2008

do carvão ao tinteiro


Dei comigo a pensar que os escritores são indivíduos normais, pacatos, perfeitamente misturáveis com outros humanos Vulgaris de Lineu, apenas com uma audição mais arguta e talvez, também, com um especial dote para traduzir línguas em vias de exposição, ou em potência, como diria Aristóteles.
Olhei para cima da mesa e vi um usado, mas ainda com um porte nobre, recipiente para lápis, esferográficas e canetas. E eles, multicolormente dispostos, estavam ali como uma espécie de desafio. Era como se me dissessem: agarra-me e obriga-me a dizer o que tenho em mim. Sim, porque afinal todas as histórias, todas as grandes ideias, todos os romances e todos os poemas saíram de dentro de uma caneta, de uma esferográfica ou de um lápis. Não é preciso ser adepto de ficção científica para ousar dizer que são eles os autores, são eles que riscam o papel o cartão e deixam traços contra o tempo. É bem possível que esteja neles: na mina negra, na tinta azul, no pigmento entre o cinza e o preto, todas as histórias que megalómanos vários disseram ser suas. Alguém viu, alguém testemunhou, alguém sabe, de um romance, de uma reflexão filosófica, de um poema, escrito com ideias em vez de tinta?
Poderá muito bem haver uma alma na tinta, um coração que se esgota cada vez que se afia um lápis, uma dor violenta e indizível no impressivo borrão do aparo que morre inclinado demais.
Todos falam do papel, da sua brancura atemorizante, do desafio à vertigem, da provocação aos olhos que só pedem tréguas, e todos se esquecem que quem verdadeiramente o ama porque se funde nele é a tinta, é o aparo que o risca como unhas na carne, é a esfera que rola e por magia vai deixando atrás de si interrupções no branco que aprendemos a dizer por palavras. Nós apenas ouvimos o que o lápis diz de forma difusa e desconexa, mas o escritor é aquele que tem uma acuidade especial para a voz que circula entre o tinteiro e o aparo e o muito ouvir chega a transformar-lhe o sangue em tinta permanente.

domingo, abril 27, 2008

carpe diem


enunciar a vida como um tempo verbal, ainda que saibamos que se trata de um verbo irregular, pode transmitir a sensação de que dominamos algo e que senhores de um destino irrisório estamos em vias de grandes feitos. Felizes dos que são parcos de pedidos, até os dias de chuva lhes bronzeiam os desejos e avermelham a alma. Porque para os outros, os ambiciosos que terão sempre um peito demasiado pequenos para que o coração possa respirar sem receio de se quebrar, para esses, não há destino, nem vida, nem morte, apenas um gosto a imediato e a instante na boca e nas palavras. Para estes, não há tempo, desse tempo que se faz a somas absurdamente simples e infantis de segundos, mas um horizonte com todos os caminhos possíveis e onde as ruas se cruzam para lado nenhum que tu saibas previamente.
Enunciar a vida é o presente, o único tempo em que a vida é possível, tudo o resto é a história do futuro.

quinta-feira, abril 24, 2008

Do imprevisto


Estar aqui não significa estar próximo. Dentro do silêncio há um baú e dentro do baú um caminho para onde se arremessa o que se quer esquecer. Alguém passou sorrateiramente e levou a chave velha e oxidada e deixou imóvel um monumento. Circulou a Lua noventa dias o teu rosto de açúcar em cana e nem uma cratera, nem um mar, quanto mais a tranquilidade... Assomo o futuro como aquelas árvores que nascem de lado em feição do vento e ainda assim dão casa aos pássaros até de madrugada. Indiferente ao somatório dos dias, porque um só dia pode ser maior que todos os dias, apaziguo o relógio e deixo que a corda repouse até amanhã. Talvez amanhã seja o dia em que as romãs abrem em dentes vermelhos...