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segunda-feira, março 26, 2012

de um só dia




A música como uma insidiosa serpente enrosca-se na boca pequena,
nos violinos saídos do ventre magnífico das prostitutas
um poema é escrito para impedir que a noite possa fechar,
o cavalo das tuas coxas fulminantes salta todos os obstáculos
e a cor azul desbota dos teus olhos grandes para dizer a foz,
os rostos tocam-se numa bissectriz rente aos lábios
e quando tudo isso acontece, sem que o tempo o saiba,
eu danço com as palavras e morro no dia único das borboletas
porque tão efémero é aquilo que digo como aquilo que vivo.

terça-feira, março 06, 2012

dos deuses e do cómico


Entardece nas colinas de Lisboa. A verticalidade calcária da igreja impõe-se no rigor da sua branquidão a toda a cidade em redor. Corre uma aragem minuciosa e fria que fende a pele nos lugares expostos. A porta range nos gonzos e abre para um lugar divino a acreditar nos crentes.
Solicito, o moço guardião, pede-nos que tomemos um dos corredores laterais, uma vez que se está a realizar uma cerimónia litúrgica. Surpresos, porque os religiosos se não divisavam, dissemos ao que vínhamos: à imposição do novo manto ao senhor. A nave central franqueou-se-nos de imediato. Se vos move tão nobre objectivo, podeis dirigir-vos para a sala ao cimo das escadas.
A sala era pequena. Algumas das testemunhas não tinham conseguido lugar prioritário e amontoavam-se na porta franqueada. Movi-me estrategicamente e, junto de uma das ombreiras, serpenteei o olhar por meia sala, a parte que me foi permitido aceder do lugar em que me encontrava. Rostos compenetrados, com um profundo e temeroso respeito, deixando, na maior parte dos casos, ver as marcas do tempo, olhavam centripetamente um vulto no centro da sala. Podiam ouvir-se, se de ouvido atento fizéssemos uso, pequenas ladainhas de pesar. Algumas mãos retorciam-se de autêntica paixão.
No meio da sala, no coração de todos mas no meio físico e geometricamente definido da sala, um figura imponente permanecia passiva e pacientemente imóvel. Não obstante sobre si pendia, não a luz sapiente e omnipresente do pai, não o espírito santo em trabalho quotidiano, mas uma formidável e intimidante chave de fendas em trabalho de aturada e escrupulosa pontaria. Cada vez que a chave descia, como há dois mil anos atrás cada martelada no cravo, a multidão sentia um quase fatal aperto no miocárdio. A auréola do senhor, com a rosca provavelmente moída de tanta renovada imposição, teimava em não unir-se ao corpo do senhor. Do fundo do meu olhar sacrílego e lutando tenazmente entre o cómico respeito e respeito cómico, só me lembrei do poema de Augusto Gil: mas as "beatas", Senhor, porque lhes dais tanta dor?!... Porque padecem assim?!...
Abandonei o cerimonial com uma atinente dúvida metafísica: será que no fim, já noite dentro, lhe ministraram paracetamol para as dores causadas por tão satânico parafuso?