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sexta-feira, março 23, 2007

o lugar próprio das coisas


toda a noite se ouviu um piano, um piano já rouco de tanta música dizer. nos degraus de marfim deslizaram histórias antigas e uma paisagem de sóbria harmonia acomodou-se para saudar o dia. as janelas de casa deixavam entrar na luz pouca de fim de noite a cidade serpenteante. tremeluziam os olhos das pessoas no brilho branco dos lençóis. a árvore grande despenteada pela noite de vento respirava verde. nas paredes brancas dissimulavam-se os fantasmas das semi-colcheias em ecos perfeitos. a fronteira de luz separa dois mundos e a música do piano rouco é o passaporte para cruzar de um ao outro. as estrelas retardatárias acomodam-se em pequenas gavetas de nuvens. e o sol aparece com os ombros expostos e um sorriso de enternecer quem na cela acorda atento ao ruído da vida. as gaivotas partem para a pesca com as asas cheias de nada e só por isso planam iludindo o cansaço e o azul imenso. uma criança ri porque o cão ladra e o gato mia e fica feliz pelo lugar próprio das coisas.

quinta-feira, março 22, 2007

De cavalos e desejo


Desejo um cavalo, um simples com quatro patas e um coração de vento e que traga nas ventas frondosas um olhar fixo de ver o mundo.
Se for possível, um corso de Carnaval para embelezar o curso dos dias e a árvore onde anoitece primeiro.
Depois, porque o tempo é curvo, um relógio que pingue gotas de ócio porque é urgente selar para viagens por outras vozes.
Se alguém quiser tenho um rio de ostras e margens de ternura onde os peixes são de névoa e as correntes de espuma.
Por pouco mais que um raio de sol, vendo a alma e uma assoalhada que dá para albergar um exército de sonhos. Talvez espere pela primavera que vem subindo dos trópicos com odaliscas e tâmaras de paladares inconfessados.
De Andrómeda é possível que chegue um aceno de vida, uma voz semi-breve ou, quem sabe, uma vela que enfunada arraste o universo. Ou talvez chegues tu com o teu tacto de talco e os lábios de amansar as marés excessivas.
São oito os dedos que apontam a lua e só sobram dois para endoidecer os teus seios que se recusam a morrer de tédio. Quando chegar esse alazão que o poeta prometeu trazer ao poema deixarei escrito que nada é impossível mesmo amar demasiado às segundas-feiras.
É verdade que o mar é um egoísta azul que se veste de gala nas tempestades, mas ainda assim sobra muito de desejos e praias com contas de vidro para incrustar em teu pescoço de cisne.
Ao longe ergue-se no dorso fugidio da manhã uma novidade: um sol prometido por Galileu e caem graves as aves da noite.
Tu és um réptil de cores cintilantes, uma língua de fogo a lembrar as iluminuras, uma fada com olhos em forma de asa, uma sossegada fonte para um coração deserto.
Ainda não chegou o meu puro-sangue, aquele que dará leveza aos meus passos, que da distância fará perto e que ao acasalar com Pégaso voará para onde quisermos.
A música com que respiras é uma suave harpa, é a ondulação imensa deste trigo que só no teu ventre se confunde com o ouro.
Outro dia choveram palavras, um dilúvio de verbos pelas calçadas fora, uma torrente de preces sem destino, um poema inteiro desaguou no rio.
De quem são estas mãos que seguram o mundo? É grave que me falem da gravidade que eu não percebo e se esqueçam do valor absoluto do sabor dos teus lábios. Por isso, dois são já os cavalos do meu desejo, um que traz os dias nunca iguais e outro onde alijo o peso do tempo em que te não vejo.

quarta-feira, março 07, 2007

Elogio do múltiplo


Há quem não saiba que os dias são redondos e a cores. Há quem viva tudo no vértice de um só dia. Há quem não saiba por onde começar a vida. Há os que no desespero circulam como o sangue numa tangente à alma. Há os que nos lábios semi-curvos deixam morar palavras demoradas. Há os que não hesitam e deixam que o desejo ofusque a própria luz. Há mesmo os que mergulham nos sonhos para ser mar e rocha e tempestade e visitar a morte. Há os que inocentemente abdicam das horas para dar magia aos dias. Há os que amam os dedos que erguem mundos do nada e poisam suavemente nas janelas olhando só azul. Há quem caminhe sem hesitar no gume das estrelas que nunca anoitecem. Há os que preenchem a boca de aromas absolutos para dizer simplesmente que o tempo é velho de mais para ainda existir. Há também os que nunca saíram da margem de si próprios e ainda assim sabem todos os segredos que a existência oculta. Há mesmo os que acreditam que um simples gesto de ternura mais ousada pode desequilibrar o universo.

terça-feira, março 06, 2007

Ingratidão do tempo


Talvez fosse tempo de repensar o curso que vinha dando à sua vida. As noites eram agora mais amargas, os velhos amigos escasseavam e o álcool já não despertava a alma de forma avassaladora como antigamente. Nos bares que frequentava as mulheres eram cada vez mais esquivas, as aventuras de uma noite rareavam e, quando consumadas, deixavam-lhe um trago amargo de pouca valia. Lembrava-se dos tempos em que as noites eram um festa ininterrupta, em que tudo era luz e cor e música para alimentar os sentidos. Os tempos mudam, pensava ele, para justificar as mudanças na própria vida. As jovens de pele luzidia e libido intempestiva procuravam garanhões, machos no zénite da pujança, e olhavam-no já com alguma desconfiança. A barriguinha combatida a muito custo começava a atraiçoá-lo. No entanto, ele considerava-se na posse de todas as suas faculdades, mas a melhor publicidade é conseguida pela adesão à primeira imagem e essa era madrasta. Nessa noite, quando lhe cantaram os parabéns e lhe ofereceram o bolo de aniversário com as 86 velas estranhou que nenhuma das moças que solidariamente cantaram o tivesse desafiado para uma noite de arromba. Adormeceu convencido que o tempo é ingrato.