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quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Da saudade


Ao meu pai,

Quando a grande noite se avizinha, ave de insondáveis lugares, aquilo que nos resta é guardar o brilho, o toque, o som amável no único lugar inapagável, a memória. Procuramos nestes dias de olhos no horizonte perscrutar um sentido, uma fórmula que decifre o que não pode ser dito pelas palavras. O silêncio desce cumprindo o inexorável. Enquanto alguém saiba que aqui estiveste, não terás de facto partido. E há uns que sabem mais do que outros porque mais próximo respiraram a mesma casa, a mesma morada de afectos. O tempo gasta-nos, passa sobre a nossa pele e enruga o olhar, amordaça a voz e convida-nos a mudar de substância. Nada há que nos espere, nada há que nos redima, nada há que nos substitua, apenas ficaremos para sempre presentes nos que nos amaram. O inevitável não é indolor por ser inevitável, apenas ocorre como a própria estrutura da realidade. As coisas são o que são, a vida filtra-se a cada novo ocaso, a ausência de cor é um repouso mais prolongado. É esta a história dos homens, esta será sempre a história dos homens, aceitar não é uma rendição. É saber que o Inverno pode tardar mas nada há que o impeça de se cumprir. Por isso todo o tempo é pouco para amar a vida e amar os que nos ensinaram a respirar. É um até logo, nunca um adeus!

24/02/2005/6

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Para quando a liberdade?


«O medo de ser livre provoca o orgulho de ser escravo.»
Rudolf Rocker

Porque será que é mais fácil acreditar nos deuses do que acreditar nos homens?
Coloco amiúde esta questão a mim mesmo e enquanto procuro a resposta, uma das muitas resposta possíveis, sou levado a pensar que qualquer que ela seja nunca será definitiva e como em tantas outras áreas da existência humana ela radicará sempre na escolha que cada um fizer de si próprio.
Kant disse-o de forma muito clara: o homem está condenado a colocar questões às quais nunca será capaz de responder. É esse o sortilégio e o profundo abismo das questões metafísicas. Mas, em simultâneo, será também este universo de questões aquele que traçará a fronteira entre a animalidade e a humanidade.
Protágoras, segundo citação de Diógenes Laércio, terá dito: com respeito aos deuses não posso conhecer nem se existem nem se não existem, nem qual a sua natureza, porque se opõe a este conhecimento muitas coisas: a obscuridade do problema e a brevidade da vida humana[1]. Protágoras parece-me um homem sensato. Mas Protágoras tem sobre si o anátema de ter sido sofista em contraponto aos filósofos. Será isto motivo para não ter razão?
Desde os cultos primevos até às grandes encenações dos cultos monoteístas contemporâneos não consigo divisar diferenças essenciais. A não ser, talvez, a perda de autenticidade. Parece-me infinitamente mais sensato adorar o Sol, a água, ou a natureza na sua pujante diversidade, do que uma entidade antropomorfizada que de tão abstracta só existe como conceito.
A célebre afirmação de Tertuliano Credo quia absurdum (Creio porque é absurdo), tem servido ao longo do tempo como defesa da fé e da crença religiosa contra a exigência da compreensão racional. O preceito fez escola e hoje, no início do século XXI, é possível ouvir quem defenda que este século será religioso ou não será...
Admiro a religiosidade dos chips de sílica, do ADN, dos foguetões, das ressonâncias magnéticas, dos antibióticos, dos supercondutores, da física quântica, dos movimentos globais contra a fome e pela justiça social, da químio e da rádio terapia, da clonagem, da fecundação in vitro; mas não consigo admirar a religiosidade dos que caminham de joelhos, dos que se deixam crucificar, dos que apedrejam o diabo, dos que se auto vergastam, dos que adoram ícones, dos que promovem alucinados em vez de os tratar, dos que contratualizam uma promessa, dos que matam em nomes do seu deus, dos que têm um lugar exclusivo no céu, dos que são o guardiães da verdade revelada, dos que promovem o sacrifício a expensas da salvação, dos que sentam o corpo sempre ao lado dos poderosos e dizem ter o espírito ao lado dos indigentes.
Deixou de ser politicamente correcto afirmar que a religião é o ópio do povo, mas, talvez, dizer que é o xanax, que é o Uísque para as dores do espírito, não seja tão desajustado. O absurdo é haver quem acredite no absurdo e mais ainda quem promova o absurdo como forma privilegiada de dar sentido à existência. O absurdo é haver quem desavergonhadamente promova a ignorância como forma de acesso ao reino dos céus. O absurdo é projectar no fundo da caverna uma ficção barata e querer manter aí os fiéis prisioneiros porque the show must go on.
Talvez o século XVIII já tenha dado a resposta mas, claro, trata-se de uma resposta politicamente incorrecta : "L'humanité ne sera heureuse que lorsque le dernier roi sera étranglé avec les boyaux du dernier prêtre."
Curé Meslier, rationaliste, athée et révolutionnaire, mort en 1729






[1] Protagoras, Fragmentos y Testimonios, Ed. Aguilar, p. 109.

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Valerá a pena uivar?



As folhas, timidamente, começam a aflorar nos ramos. Os pequenos nódulos caprichosamente deixam que o verde volte a respirar e Perséfone renasce para um novo ciclo. Mas o que sabemos nós da mudança? Se o observador se confunde com o observado é impossível ver claro. Só a distância nos permite ver o que há para lá do olhar. Os rios heraclitianos correm mercê de um inusitado degelo cada vez mais velozes e assim nem na primeira vez nos banhamos nas mesmas águas. Vivemos hoje num permanente vórtice e já não há lugar para olhar debruçado no sossego. Entre o breve e pré-histórico ontem e o amanhã fulgurante há uma ponte virtualmente suspensa sobre o absurdo. A estonteante velocidade a que se transfiguram as nossas vidas embota-nos o entendimento e a realidade é um lugar desfocado de instantâneos desconexos. Olhamos para trás perscrutando o caminho que até aqui nos conduziu, mas quando damos conta já não estamos aqui e mais um hiato se somou a tantos outros que torna a existência uma intermitência que não há forma de suturar. Escravos das coisas que nos libertam, criadores subjugados pelas criaturas, alienados pelo excesso e pelo supérfluo, já só lemos às escondidas os poemas antigos de quando éramos humanos, demasiadamente humanos. Temos o Universo na ponta do indicador mas saberemos nós transformar isso em alimento da felicidade? Neste canto do mundo onde se sofre penosamente de abundância as crianças já não brincam: digitam brincadeiras. As crianças não sabem saltar de uma pedra para a outra sem a ajuda de um joystick e quando temos saudades dos amigos beijamos a webcam. Decididamente sou um velho do Restelo, ou melhor, um anquilosado Windows XP em tumultuosas navegações interiores. Tenho que fazer urgentemente um upgrade à alma antes que os vírus ma bloqueiem de vez...

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

"Senhor do tempo"


Será que os que não têm relógio, a não ser o da alma, também celebram datas? Se esquecêssemos o relógio mecânico, se atendêssemos só ao relógio solar, ou à clepsidra, poderíamos furtar algum tempo ao tempo. Assim, não envelheceríamos nos dias em que o Sol se esconde ou, em alternativa, nos dias de estio em que a chuva não nos visita. Em pequeno desmontava e montava um velho relógio como forma de iludir a espera. Nessa altura eu era o “senhor do tempo”. Rodava perto da vertigem os ponteiros, e, desse modo, os minutos e as horas comprimiam-se ou distendiam-se a meu belo prazer. Viajava no mostrador como quem viaja pela vida, com a vantagem de poder parar e regressar ao início se a história começasse a ganhar contornos que me desagradassem. Nesse tempo era-me permitido retirar os ponteiros e com esse gesto de assombrosa rebeldia criar a eternidade. Aproveitava então para sonhar sem estar sujeito ao ciclo dos despertares sucessivos. Viajava pelas quatro paredes do quarto como numa tela panorâmica e os cavalos de vento saltavam as arestas e perdiam-se no tecto como as constelações se perdem no firmamento. Voltava a colocar os ponteiros porque me apetecia voltar a ter fome e permitir que a minha mãe regressasse. Eu sabia que ela não regressava enquanto os ponteiros não voltassem ao mostrador. Aliás, nessa altura só acontecia o que eu quisesse que acontecesse, porque eu era o “senhor do tempo” e o “senhor do tempo” é o único que tem poder para criar realidades ou, magnanimemente, permitir que elas se sucedam no seu ritmo natural. Infelizmente esse relógio perdeu-se algures na minha meninice, daí para cá tenho envelhecido e deixei de ser o “senhor do tempo”. Se alguém souber do meu relógio (isto se não tiver aprendido a usá-lo para sonhar alheio ao tempo) agradecia que mo enviasse. É fácil reconhecê-lo! Se olharem bem no mostrador as minhas impressões digitais cavaram um círculo exacto e o soar das horas confunde-se com o soar do meu coração, a corda é a mesma e acertámo-nos numa cumplicidade que por ser fora do tempo é mais duradoira que a própria eternidade.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Do tempo divergente


Há vinte anos - é tanto tempo vinte anos e passaram como um sopro -, quando comecei a receitar manuais de filosofia como suplemento vitamínico de grandes ideias, os pacientes pareciam-me menos pacientes. Parecia haver um brilhozinho nos olhos que augurava uma pujante saúde mental ou, pelo menos, um desejo de transformar o futuro. Hoje, são os filhos destes que me olham com um olhar vago, um mortiço incómodo resistente a qualquer desafio. Pergunto-me se não terei sido eu que envelheci e perdi a acuidade de falcão que tinha então no olhar, e, por isso, vejo mal e, logo, entendo mal. Digo que são cada vez mais imaturos, mais conformados, mais incapazes de tentar a sorte de Ícaro, ou serão os caminhos deles cada vez mais divergentes do meu e por isso nos afastamos inexoravelmente? Eles caminhar, caminham. Mas talvez me falte o fôlego para lhes seguir no encalço e, por isso, justifico-me dizendo que não sabem nem por onde nem para onde vão? O tempo não aplana só as montanhas, também incita a outros voos, alimenta outros sonhos...
Tenho que levar as asas e os olhos à oficina!!!

Pensar o olhar

O Alberto Caeiro dizia que “pensar é estar doente dos olhos”. Talvez ele tivesse razão, mas ouvi ontem o Miguel Sousa Tavares dizer que: “o olhar não nos engana, que o olhar não mente, só o olhar capta a verdade” e, mesmo que quisesse seguir o preceito pessoano, não resisti a esta necessidade de pensar o olhar, ou olhar o pensar, já não sei bem o que vê e o que é visto.
Olhar a curvatura das ondas riscadas pelas asas das gaivotas é bem mais interessante que medir-lhes a altura e calcular a força com que debruam o areal. Olhar o recorte das nuvens e ver nelas os animais da infância é muito mais aliciante do que saber se são nimbos, estratos ou cirros. Olhar as heras que num amplexo vindo do fundo do tempo estreitam as árvores é bastante mais sedutor do que descobrir se são parasitas ou infestantes. Olhar a curvatura perfeita do sorriso de uma mulher é bastante mais agradável do que saber quais os músculos que foram convocados para tal gesto.
Mas não será que olhamos com o corpo todo? Que prazer será esse que se desconhece como prazer? Um poema que não percebo não me pode dar prazer, assim como uma pintura, uma fotografia que me agarra os olhos, agarra-os por dentro, quando uma luz interior se acende para iluminar de sentido o meu mundo.
Pensar não pode ser estar doente dos olhos! Pensar é ver e ver para além do olhar. Alguém disse que a realidade gosta de se esconder e assim sendo o pensamento, a imaginação é aquilo que nos permite levantar a pele do real e ver o coração das coisas. Olho para este amontoado de letras e vejo o que penso, ou será que são elas que me pensam e há ainda pouca luz aqui para pensar o que vejo de forma clara? Felizes dos que pensam com a paleta do arco-íris!

domingo, fevereiro 05, 2006

Da intolerância e do tempo


Hoje incendeiam-se embaixadas a troco de uma caricatura, ontem faziam-se cruzadas para matar os infiéis.
Hoje fazem-se explodir mártires a troco de uma causa, ontem uma causa colocava na fogueira mátires da intolerância.
Será que é o mesmo ódio que ontem e hoje nos alimenta? Ou será que apenas se cumpre a lei de Talião, do olho por olho, dente por dente?
Se ao invés de querermos apagar a memória a usássemos para iluminar o futuro, talvez pudéssemos caminhar juntos sem pedras na mão.
Será que ninguém se lembra das avisadas palavras de Voltaire: "nunca respondas a uma palavra de raiva com outra palavra de raiva, é a segunda palavra que faz a briga!"
Estaremos nós condenados ao vatícinio de Hobbes: homo homini lupus?
E eu que ambicionava um mundo melhor para os meus filhos e todos os que com eles hão-de partilhar o futuro, vejo agora como a ignorância e a ingenuidade são das poucas razões para ainda acreditarmos que dias melhores virão.
Sonhar é cada vez mais estreito e insuficiente e por isso, também, percebo melhor a cada dia que passa o presciente aviso de Aristóteles: "quando a maioria dos cidadãos se deixar de interessar e virar as costas aos assuntos da cidade, serão os crápulas e os indivíduos sem escrúpulos que se sentarão nas cadeiras do poder." Antes não tivesses razão velho filósofo...

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Lisboa em noite de luz...


A grande cidade adormece como uma serpente de luz. A chuva lava-lhe de mansinho o rosto. É Fevereiro ainda nos primeiros passos. O rio traz notícias líquidas e cheiros verdes da lezíria. Visito as estrelas que me riscam de prata os olhos e nada entendo dos colapsos das anãs brancas. Mas também nada percebo do ter que haver fome e homens que semeiam balas nos campos que foram de trigo. Às vezes apetecia-me morrer só por um bocadinho, como dizia o José Gomes Ferreira, para acordar depois e acreditar que nunca vivera em tempos de ódio. Tenho livros que me olham com lombadas de ingénua desconfiança e um relógio que derrama segundos que nunca foram primeiros. Gostar, gostava mesmo era de saber se os homens são aves cansadas ou cornucópias de uma só cor. Entretanto, a noite inscreve o sono no meu caminho e eu suspendo o pensar até que o Sol de novo me aqueça a alma. Talvez ainda venha a ser capaz de dizer porque arrasto um nome e amo os que amo.

À Martocas















Uma grande "miadela" de todos os que te amam!