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segunda-feira, janeiro 22, 2024

Da geometria da vida

 

Algumas palavras são redondas por tantas vezes rolarem demoradamente na língua e de tão usadas são as mais amigas, as que mais confortam, as que mais afeiçoam o ouvido aos ruídos do mundo. A memória aloja o nosso nome dito e redito por quem amámos e ainda amamos, mesmo que o tempo os desaloje das nossas vidas e do toque grato das nossas mãos, mas, enquanto houver marcas do passado gravadas na intensidade e na partilha dos lugares de afeto, nada se esvanece por completo. Apercebo-me com maior agudeza que o círculo é a geometria das nossas vidas, o tempo do fim torna nítido o tempo do início e nesta viagem de uma íntima e doce saudade o presente é intemporal. A cada nova viagem surge a descoberta, o detalhe, o pormenor daquilo que passou por nós e da indiferença de então emerge a sombra iluminada do que foi importante apesar de ignorado. Do que nos esculpiu com talhe fino e paciente só muito depois, já o cinzel perdido e o escultor confundido com tudo o que no mármore ficou dito e por dizer, só então, percebemos que a rudeza das arestas que ainda ferem são testemunho do trabalho que em seu tempo ficou por fazer. Infelizmente, só no ocaso dos dias Calíope nos inspira e o que foi dúctil é agora um imenso desafio para que da solidez da estátua de braços caídos se possa ainda cinzelar o abraço que ficou por dar.

sexta-feira, janeiro 19, 2024

A imaginação é uma casa frondosa

 

A imaginação é uma casa frondosa,

nos dias em que os ventos adornam     

as portadas de silêncio azul. 

Na parte esconsa do sótão dançam os fantasmas,

e o soalho range com saudade

          da seiva que em tempos o inebriava.

Cada memória é um degrau carcomido

        quanto mais se desce.

E na cave dormente mora a criança,

o frágil navio sem astrolábio

que lhe diga onde colocar as estrelas,

por isso se alimenta só de lua

e marés grandes para desencalhar o medo.

Na sala de estar o piano forte

de semibreve tornou-se eterno,

e bem no centro o cavalo de baloiço

agita-se na Cavalleria Rusticana

        que já só ele ouve.

As paredes brancas, tela de entretecer os sonhos,

estremecem ainda pela soma dos muitos passos.

Já voaram tantas telhas, julgando-se aves em liberdade,

e em alguns dias de chuva oblíqua

a imaginação em alterosas vagas

é um rio de completo desassossego

e eu, a ponte, olhando de muito acima,

vendo como são frágeis

estes pilares em que me sustento.