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segunda-feira, outubro 30, 2006

Navegações interiores


Podia perfeitamente ser um marinheiro, daqueles clássicos com camisola às riscas e sacola desbotada às costas. Talvez trouxesse um chapéu à Corto Maltese e a memória cheia como uma maré viva. Havia de se lembrar das mulheres que nas tascas dos portos têm o olhar lascivo reflectido nos copos sempre vazios e amam brevemente entrecortando a respiração. Possivelmente, no rosto, num braço ou fundo no peito, teria uma cicatriz a marcar a dureza que acaba as conversas que falam com suspeita da honra. O caminhar teria que ser ondulante para tornar evidentes as longas travessias dos oceanos e teria no bolso mais próximo do coração uma fotografia sépia de alguém que quase já esquecera o nome. Teria certamente a voz rouca enrolada em tempestades e acenderia cigarros em cigarros para estar rodeado de um perpétuo nevoeiro lugar onde começam todas as aventuras. As mãos haviam de ser rudes como as amarras que mantém o barco fundeado incólume aos recifes que o reclamam com gritos alterosos de espuma. Perder-se-ia numa pensão barata com cheiro a salitre e com janelas incompetentes para emudecer a voz do mar. Havia de olhar a sua vida por uma bússola que nunca soubera apontar o caminho da felicidade, mas apenas a imperativa necessidade de zarpar sempre para os lados em que o Sol é maior. Podia, perfeitamente, ser um marinheiro, ou qualquer um de nós, navegando os dias roubados ao oceano do tempo.

1 comentário:

ELA disse...

"Janelas incompetentes que emudecem a voz do mar".Em algum lugar de abraços que se oferecem por trás da vidraça opaca que inviabiliza a vista para esse mar. Em algum lugar onde as mãos grossas se colocam no colo de quem pede. Podia ser um marinheiro à procura da forma mais branca de abrir a incompetência de uma janela interrompida pelo tempo.