
Há dias vasculhava o dicionário e uma palavra chamou-me intempestivamente. Depois demorámo-nos à conversa porque era grave o seu tom e ficava nos lábios como resíduos de amora. Habitava o meio da página quatrocentos e qualquer coisa e dizia ter o corpo pronto de areia para uma vida breve. Olhei-a onde se acentuava e com uma timidez inusitada pediu-me que passasse a folha que outras mais extraordinárias adiante me esperavam. Disse-a vagarosamente até que se tornasse maiúscula e ela começou então a perceber que a minha boca era também outra casa onde podia morar demoradamente. Soletrei cada sílaba como se fosse construir uma ponte de música ou como um bebedor de licores tão subtis que só podem beber-se gota a gota. Uma euforia adolescente desceu-me do corpo às mãos e pensei em rasgar a folha para torná-la só minha, mas... acabei por recuar, porque já a tinha dito e era, por isso, também já do vento e dos que ouvem o vento. Todas as palavras germinam no teu peito diria eu a uma mulher se a amasse, todas as palavras na boca dir-lhe-ia serem necessárias para esperar o alvorecer, todas as palavras em uma só é o que numa vida inteira tentamos dizer.