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sexta-feira, março 27, 2015

Meio dia absurdo ou a morte do poeta

Por entre sinos, buzinas e cornetas sem luz nem lustro o dia acabou por surgir mais curto que os outros, mas igualmente sinistro e decisivo. Amélia tinha uns pequenos laçarotes, em tom rosado ou vermelho demasiado gasto, que usava só em pensamento. Habilidade muito difundida esta de usar coisas em forma pensada. Falo de mim próprio, quando me vejo nas margens e sem fôlego para atravessar para o lado da sombra,  quando isso acontece, imagino uma árvore com uma copa saia rodada, com cigarras em dose reduzida, frutos já colhidos, e posso assim continuar num sol de 42º até haver escadas de água branca e casas de cal luminosa. Tenho mais dificuldade com as palavras do que com os lugares e, por mais que fechem as janelas e roubem os marcos geodésicos, perco-me com muito maior frequência no significado do que nas encruzilhadas por onde navego. Não preciso de relógios, bússolas e de nada me servem as estrelas porque as confundo todas numa imensa orgia de cor e de noite não vejo aqueles galos que nos telhados confidenciam para onde sopra o vento. A vida é como os chocolates é o que eu sei cada vez melhor. Os amargos são os mais saudáveis mas poucos os querem para despedir os dias. Coisas absurdas atrás de coisas absurdas acontecem se nos damos ao trabalho de estar atentos, e é talvez nestas alturas que homens de coração robusto, trabalhado em granito, descobrem que a mariquice das lágrimas liga bem com uma mini fresquinha, porque só choram quando o gás os engasga. Abro uma gaveta quando me quero aventurar num mundo novo. Debaixo da folha de papel com malmequeres miniatura que lhe forra o fundo há sempre uma carta, um postal, uma certidão de ter morrido, casado ou nascido. Em pequeno cheguei a pensar que já as vendiam assim, que só lhes acrescentavam as bolas de naftalina e o ruído da madeira seca a aninhar-se na escuridão da cômoda. Sei agora que são lugares onde se guardam os sedimentos dos dias vividos. Há um pouco de cada um de nós espalhado pelo fundo das gavetas, e hesito em chamar-lhes berço ou esquife apenas porque não sei para que lado se inclina a memória. Gostava de pensar a cores, mesmo nos dias sinistros e decisivos, porque assim podia escorregar no arco-íris sem precisar de uma licença de infância ou ter que pedir um poeta emprestado à morte. 

1 comentário:

renato monteiro disse...


Este texto dá cartas. Está bem jogado.
Apostei logo no princípio, curti no meio e, sobretudo, fui à bola com o fim!

Agora, outro, é de coçar a cabeça, não?