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quinta-feira, março 24, 2016

poesia-me...

É sábado e não sei o que é feito do contador dos dias
As árvores estão quietas sobre raízes quietas sob nuvens desfeitas
À distância formam-se as palavras no recorte dos lábios e soam
Mulheres e crianças caminham enquanto crescem
Um cão sobe pelo passado e é quase lobo
Numa mesa decide-se o teu futuro entornando-o.
Sempre me disseram que os sábados são rápidos de viver
E ainda que os sonhos durem as primeiras horas
Geralmente não sobrevivem à luz desmedida com que te acordam
Nem ao excesso de picante com que condimentam a realidade
Mas, ainda assim, os amantes florescem ao fim de semana
E dois em cada três admitem ter gemido de prazer autêntico.
Os sábados são os dias em que ninguém quer morrer
Porque as coletividades estão cheias e os bilhetes pagos
E irrita interromper uma dança para varrer folhas,
Ou defumar de eucalipto a mágoa e a saudade.
É preferível  amanhar as criancinhas, enlaçar-lhes cabelo e voz
E descer aos rios que só existem para as entreter,
Com gaivotas que são balões de gás mais baratos,
E peixes que saltam para lacrimejar nos círculos de azul onde se escondem.
Os sábados, mesmo os mais cinzentos, têm sempre enormes janelas abertas.
Os escravos vão à missa e são voluptuosas todas as mulheres livres
Que nos jardins consideram usar cores extra e perfumes de  Marrakesh.
Estes são os dias de aventura e risco e de abocanhar a vida
Porque nos domingos o trapézio está preso no lado obscuro da lua
E as lantejoulas emudecem nas gavetas entre mofo e bichos do pó.
Os sábados antigos eram generosos com os magalas e as sopeiras
Davam nós nas mãos, beijos clandestinos e faziam filhos em pensões baratas
E as meninas de família nesses dias invejavam quem urgentemente se amava
Enquanto elas com o cio amarrado ao corpo se mortificavam em ânsias e suspiros
E pecados mortais atrás de pecados mortais de tantos desejos atirados para o futuro.
A família fazia dos sábados um restaurante de apaziguar ódios
Distribuíam gratuitamente um enorme sortido de beijos de judas
E no fim contavam as facas e as feridas abertas.
Nos sábados por impositivo legal nunca chovia
Ninguém vestia fatos usados nem punha ouro a fingir
Nem lamentava amar o mesmo homem durante décadas.
Aos sábados são permitidos todos os excessos que dão asas
E usar beijos e festas acintosas acima da cintura para depois levantar voo no corpo todo.
Aos sábados há futebol e outras perdas de memória
Os filhos saem pela primeira vez para se embebedarem
E a vizinha do lado aspira-nos o sono mal rompe a madrugada
No sábado dispensamos o sossego e outras coisas inúteis
E todos acreditamos na imortalidade até segunda-feira…

3 comentários:

RM disse...


Qualquer dia passas a escrever daqui para a frente poemas como este!E não é nada mau!

Com uma abraço,

Renato Monteiro

Maria Miranda disse...

Gosto de tudo!Gosto da invenção do "poesia-me" como alternativa à linguagem gasta dos verbos, gosto da resposta ao repto em frase curta, redonda, doce umas vezes, amarga outras...gosto que cada imagem se desdobre em novas imagens, cobrindo e reinventando a realidade...e

a merecer muitos sábados a quem assim trabalhou a palavra e criou o poema.

RM disse...


Quando te poesias, de novo?