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sexta-feira, abril 28, 2017

voar como os falcões

A linha de costa perdia-se ao longe onde o olhar acabava por se render. Apenas as aves polvilhadas com a cor da espuma emergiam por entre as nuvens. A manhã abria-se à luz, ao sol e ao anúncio de outro dia. Tudo em repetição rigorosa como nos outros infinitos dias. O mesmo cheiro húmido complexo de ervas e algas; o mesmo frio cortante a embater na arriba tão velha quanto o mundo; a mesma música das ondas a dobrarem-se sobre si próprias, a respirar sal e embalar os viajantes da rebentação. 

Embora parecesse uma estátua, a respiração acabava por o incriminar como gente. Estivera toda a noite a olhar hipnoticamente para uma pequena luz laranja que subia e descia na cadência da onda. Sentira frio e os goles de whiskey trataram de remediar tal mal. Sentira fome e a sandes mal amanhada depressa corrigira tal estado. Mas, tirando a contemplação dos astros e o ouvir a forma como caem os segundos ao somar o tempo, nada tinha tirado do mar. O isco, teimosamente, não seduziu nenhum dos peixes que ele sabia existirem naquela linha de espuma, música minimal e força bruta repetida.

Debruçado sobre o abismo, os primeiros raios de claridade souberam-lhe bem, aconchegaram-lhe o corpo. Não eram tão intensos que chegassem à alma, protegida que esta está por uma carapaça de palavras e senhas desconhecidas, mas, ainda assim, alertavam-no para a sua condição de ser vivo.

Três gaivotas planavam a não mais que cinco metro do seu lugar de pernoita e todas viraram a cabeça interrogando-se acerca daquela ave estranha que competia com elas em altura e envergadura.

Recolheu anzol e chumbada e afeiçoou a cana num saco preto de pano que terminava com um nó que já há muito desistira de desatar. Bebeu os dois goles de álcool que ainda restavam e acendeu um cigarro. Pela altura do sol, eram sete horas e quarenta e três minutos quando mergulhou de sessenta e seis metros de altura. Nos poucos segundo que voou como um falcão ouviu repetidamente a voz da mulher: “vai, vai lá à pesca, mas não te atrevas a voltar de mãos vazias!”


Nunca os peixes daquele litoral tinham visto tão grande e suculento isco. Começaram pelos olhos castanhos…

3 comentários:

renato monteiro disse...


Pode dizer-se mal? Então, a única coisa que não gosto deste texto que, ao ler, não se deixa a meio, é do " azul profundo". Como eu embirro com isso! Talvez por me lembrar o " verde sem fim!"
Um abraço!

af disse...

quer cá parecer-me que este comentário ilustra à saciedade a persistência do velho freud! aliás, este comentário deveria fazer parte da psicopatologia da vida quotidiana. vejamos: logo a seguir ao tetra do slb, não admira que azul profundo e o verde sem fim te irritem sobremaneira. os azuis estão profundamente afastados da velha glória e os verdes hão de sofrer sem fim até alcançarem um vislumbre de glória... o inconsciente - que não o bom gosto! - prega-nos cada partida!...
mas, ainda assim, e a cause des mouches, mudei de paleta...

RM disse...


Deves ter-te lembrado da letra do Francisco José!...Só pode ser por isso que mudaste a cor...
RM