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sábado, junho 17, 2017

depois do inverno...

Com o tempo fora perdendo o apetite, a voracidade, o encantamento, o entendimento da sedução. Ou se sentia e percebia tudo isso, fazia por esquecer com um encolher dos ombros que, não sendo de derrota, era, pelo menos, de tréguas prolongadas.

Quando se chega aos cinquenta é difícil não fazer uma espécie de balanço intermédio. Porque cinquenta é um número redondo e, sobretudo, porque cinquenta é muito tempo de vida. Na maioria das vezes, significando muito mais passado do que futuro.

Ela fizera esse balanço. Continuava a fazer esse balanço, porque já fizera os cinquenta e um e os cinquenta e dois. Um casamento de vinte e seis anos, dois filhos prontos para voar quase de forma autónoma, uma casa sem grandes luxos mas suficientemente confortável para não se sentir agredida no regresso ao fim de cada dia, uma condição económica suficientemente desafogada para não ter que viver angustiada pela duração dos meses e um emprego supostamente estável e com poucas notas de escravatura, tudo isso foi objeto de avaliação e continuava a ser.

Tendo aparentemente tudo o que se assume como essencial na vida de uma pessoa, questionava-se porque não se sentia realizada, feliz, completa ou qualquer outra sensação que a deixasse viver os dias, pelo menos mais dias, com olhos brilhantes.

De manhã, quando se olhava ao espelho, com as últimas gotas ainda a sulcarem o corpo, sentia que as esculturas do tempo tinham como modelo as peças mais avantajadas de Moore e isso nem sempre lhe agradava. O rosto que via trás do seu, emergindo do embaciado vidro, bafejando-lhe pescoço e orelhas, nem sempre o reconhecia de imediato. Os filhos que, sem voz nem gestos ternos, comiam manhã cedo para logo desaparecerem, sentia que tinham crescido demais e talvez o coração se tivesse afundado em demasiado tamanho.

De casa saía todos os dias quase ao cronómetro. Sete minutos até ao autocarro, vinte e oito, trinta de viagem e mais cinco a seis de passo reservado até ao café, a um quarteirão do emprego. Embora não a irritasse, não a deixava particularmente feliz, ver as mesmas caras, ouvir as mesmas vozes e ter que responder a cumprimentos sem vontade. Sentava-se dez minutos, não mais que isso, para beber um café e fumar um cigarro imaginário. Quando isso era possível, escondia-se atrás da coluna e da escada que levava ao primeiro andar e imaginava fumo e sabor sozinha e podia estar em silêncio. Pelo menos para o exterior.

No emprego tudo era mecânico. Dá o braço, estica o braço, aperta, enfia a agulha e suga o sangue. Se se sentir tonto espere um bocadinho lá fora. Até as palavras eram ditas numa sequência irrepreensivelmente igual, fosse qual fosse o cliente ou o dia da semana. Escreve etiqueta, cola etiqueta, guardar num escaparate e chamar o seguinte. Depois, a meio da manhã, correr para o hospital e iniciar outro turno. Outros dias, começava no hospital e acabava em casa e toda a jornada era um vazio absoluto. Se lhe perguntassem o que tinha feito, que contasse um episódio, mesmo que pequeno e usual, nesses dias não era capaz. Descobria que também as pessoas podem funcionar em piloto automático. O que lamentava era que isso não lhe desse espaço, tempo, liberdade para viver em paralelo com a rotina uma espécie de vida.

Perguntava-se, nesse já prolongado balanço, se sempre assim tinha sido. Se, há muito tempo atrás, tinha saboreado a vida, o companheiro, os filhos e tinha ficado com os lábios adocicados. Embora a memória fosse difusa ocorreu-lhe que sim, que lá atrás as coisas que fizeram a sua vida tinham sido diferentes.

Numa pequena janela do tempo, na sua década de trinta, antes de ser mãe, lembrava-se de episódios de grande e completa entrega, de deslumbre amoroso, de jornadas épicas de sexo. De uma ou outra viagem em que, quase em êxtase, descobriu que as fronteiras não são muros mas portas abertas. Mas até esses episódios perdiam intensidade e cor a cada nova revisitação. E depois tudo o resto, a grande amálgama, o caos, a unidimensionalidade.

O homem que a olhava por cima do ombro, num vidro embaciado, logo pela manhã, eclipsava-se durante os dias e cada vez mais se eclipsava durante as noites. Ainda bem, dizia de si para si, até representar era uma tarefa cada vez mais difícil. E quantas vezes representara no passado… Quem é que nunca representou para sentir menor culpa,  pensava ela para se reconfortar. Quando lhe acontecia não coincidir no período de sono, olhava-o à procura da antiga ternura, das palavras meigas, dos tais desafios à animalidade mais humana da entrega, e não conseguia ver. Via uma coisa roncadora, desprotegida, como tudo o que dorme, e que nem a atraía nem a repelia, antes instalava a estranheza e a inquietude e doía-lhe por ser assim.

Na sua década dos trinta aquele homem foi todos os homens. Depois, começou aos poucos a deixar-se seduzir por outros homens que nunca conheceu, com quem nunca falou e que nunca suspeitaram da sua existência. Chegou a levá-los consigo para a cama e a partilhar algumas respirações ofegantes. Nunca teve coragem para encher a imaginação de carne, ossos e sangue. Não sabia dizer se era arrependimento que agora sentia ou se alívio. Apenas sentia confusamente, como sentem as coisas que estão vivas.

Seriam os próximos dez, vinte anos, iguais a estes, igualmente cheios de coisa nenhuma? Seria este o caminho em que todos os humanos desembocam, ou seria o seu caso especial e particularmente agudo? Quem teria guardado o seu fio de Ariane e condenara a deambular sem ver luz nem saída?

Talvez fosse apenas um momento de crise, embora um momento um pouco mais dilatado daquilo que costumam ser os momentos, mas que teria o seu epílogo. Ao mesmo tempo animava-se com a ideia, que já ouvira repetidamente, que as crises são também, ou podem ser, momentos de oportunidade, momentos de viragem. Crise não tem que ser sinónimo de tragédia ou final sem remissão. Estes pensamentos eram uma espécie de analgésico, uma mezinha contra o infortúnio. Ela tomava-os sem parcimónia, tão incómodas eram as dores por que passava…

Nos piores períodos, quando recolhia redonda, qual tartaruga amedrontada, ao centro de si mesma, chegou a pensar que o melhor era despedir-se, perder-se de vez. E era tão fácil! Mas, paradoxalmente, foi essa facilidade que a reteve, que a fez abrir a janela, que a levou a respirar de novo. A facilidade advém da sabedoria ou da ignorância e percebeu que não era sábia e recusava a ignorância. Quando soubesse porquê e como tinha chegado até ali, então, sim, tomaria uma decisão sobre o que fazer de si, e não era preciso saber tudo, decifrar ao pormenor, esmiuçar detalhe por detalhe, não. Bastava-lhe, pensava agora, um simples vislumbre mas nítido, a marcação do que fora sombra e podia ser luz, quando parara e devia ter continuado, ou de como a alegria de viver, seja lá isso o que for, pode reanimar-se em respiração boca a boca.

Até que um dia, perdeu propositadamente o autocarro, hipotecando por instantes, que são sempre definitivos, o cronómetro que lhe geria a vida. A chuva miúda humedecia-lhe os lábios, os cabelos, as mãos e turvava-lhe as lentes com que via, julgara durante muito tempo, a nitidez do mundo. Caminhou sem rumo, pelo puro prazer de se deixar ir. A cidade escurecia dentro da noite. Não atendeu o telemóvel, mas sentiu um prazer pérfido em ouvi-lo tocar repetidamente. Avenida após avenida, ruas e cruzamentos, calçadas e escadarias e nada de cansaço, nada de arrependimento.

Os filhos voltaram a falar detalhada e insistentemente, mas agora é ela que não responde. O marido sente frio e desconsolo sempre que vê a almofada vazia e procura-a afincadamente noite após noite e apenas a encontra na memória.

O campo de refugiados na fronteira da Etiópia também tem pessoas com braços, mas voltou a precisar da habilidade que julgava ter perdido para encontrar as veias quase secas. Aos poucos voltou a sentir-se útil, necessária e desejada em dois lugares distanciados por milhares de quilómetros.  

Aos poucos voltou a ter trinta anos.

Esperava, pacientemente, que os outros também voltassem a ter.

3 comentários:

Maria disse...


Assim se despe, e bem, uma mulher.
Também, porque não, um homem?
Mas, para quem esperava não haver retorno, soubeste terminar com um dia de sol.

Ainda maria disse...


Talvez a marca da tal escrita feminina/masculina se denuncie, pela diferença entre: "jornadas épicas de sexo" (tão másculas!) e as mais eufemisticas "jornadas épicas de amor". Se tivessem, mesmo assim, que ser épicas.
Mas continua a ser um texto com sol ao fundo.

Acrescenta ainda maria disse...


E também embirro com a ideia de "jornadas"...