Agora, quando viajo, já não levo
aquele cão que abana a cabeça a cada irregularidade da estrada, porque ficou no
ford cortina com que me cruzei à saída da minha infância. Todos os ford cortina
eram beges e deixavam fumo a anunciar a partida para lugares que eu invejava. Subia
as persianas mal caía a noite e certificava-me que a ursa menor continuava a
morar por cima do meu reino. Outros dias escondia-me para perder o norte e
segurava o magnete que teimoso dizia sempre o mesmo. E é isso que acontece a
quem não viaja: diz sempre o mesmo, ainda que use outras palavras. Todos adormeciam
ao afinar o coração pelo relógio de parede, mas eu com olhos e eco de morcego
exigia dias mais longos, porque não queria que os sonhos tivessem que obedecer
a uma métrica de vida sóbria. Do lado de fora, as borboletas noturnas desciam
da sua morada lunar e passavam à altura dos meus olhos e algumas aí ficaram
para sempre para que os meus olhos também pudessem ser mais leves que o ar. As
memórias ora são papagaios coloridos ora são corvos a debicar os dias que
somos, é por isso que os mais hábeis de nós os enganam dando-lhes a memória das
árvores em sementes. Das muitas viagens que nunca fiz guardo uma grande saudade,
mas sei com absoluta certeza que o ford cortina bege ainda por aqui há de
passar para me devolver o mundo e as palavras que não incomodam o silêncio.
1 comentário:
Registo uma palavra retirada de um balde de belas palavras:
" o dia que somos"!
Muito bem!
Enviar um comentário