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quarta-feira, maio 06, 2015

Estrela do Norte

Agora, quando viajo, já não levo aquele cão que abana a cabeça a cada irregularidade da estrada, porque ficou no ford cortina com que me cruzei à saída da minha infância. Todos os ford cortina eram beges e deixavam fumo a anunciar a partida para lugares que eu invejava. Subia as persianas mal caía a noite e certificava-me que a ursa menor continuava a morar por cima do meu reino. Outros dias escondia-me para perder o norte e segurava o magnete que teimoso dizia sempre o mesmo. E é isso que acontece a quem não viaja: diz sempre o mesmo, ainda que use outras palavras. Todos adormeciam ao afinar o coração pelo relógio de parede, mas eu com olhos e eco de morcego exigia dias mais longos, porque não queria que os sonhos tivessem que obedecer a uma métrica de vida sóbria. Do lado de fora, as borboletas noturnas desciam da sua morada lunar e passavam à altura dos meus olhos e algumas aí ficaram para sempre para que os meus olhos também pudessem ser mais leves que o ar. As memórias ora são papagaios coloridos ora são corvos a debicar os dias que somos, é por isso que os mais hábeis de nós os enganam dando-lhes a memória das árvores em sementes. Das muitas viagens que nunca fiz guardo uma grande saudade, mas sei com absoluta certeza que o ford cortina bege ainda por aqui há de passar para me devolver o mundo e as palavras que não incomodam o silêncio. 

1 comentário:

renato monteiro disse...


Registo uma palavra retirada de um balde de belas palavras:

" o dia que somos"!

Muito bem!