É nos lugares mais imprevistos e
com as personagens menos esperadas que nos surgem as grandes revelações.
Todos sabemos que a velha Lisboa
é agora, segunda década do século XXI, uma espécie de Babel, onde aportam vozes
e fisionomias que até há bem pouco tempo atrás eram viajantes de outras
latitudes e que só muito esporadicamente por aqui aportavam. A calma, a
hospitalidade e o baixo custo de vida, para o standard da maior parte dos países desenvolvidos, torna a lusa
terra um lugar muito apetecível.
Um simples passeio pelas ruas que
desembocam no rio, ou pela cidade alta, é uma incursão nos compêndios linguísticos
e, ao mesmo tempo, um revisitar daquelas cadernetas de infância onde se colavam
os cromos com povos das diferentes partes do mundo. Do inglês, com e sem
sotaque, passando pelo alemão, francês, italiano, russo, japonês, chinês e,
sobretudo, o castelhano, e mais um sem número de sons e palavras indecifráveis,
tudo se encontra sem ser preciso procurar muito.
Vêem tudo ao pormenor, com e sem
guia; a pé, no afamado 28 ou no infelizmente ruidoso tuk-tuk; parando
demoradamente para descansar os pés das exigentes colinas e, na maior parte dos
casos, para ler com a luz única de Lisboa um romance que sai, deste modo,
inevitavelmente favorecido. Param junto às montras e fotografam as exóticas
comidas: pastéis de nata, peixes e mariscos variados, como quem fotografa
baratas, gafanhotos ou serpentes sem escalpe num mercado de Banguecoque.
Junto ao rio celebram votos e
tiram fotografias de grupo e, alguns, permanecem imóveis, verdadeiramente
hipnotizados, tocados pela magia do Tejo, horas a fio, sem qualquer outra intenção
que não seja guardar para sempre a visão de uma vida.
Nesta Lisboa há também lugar para
os desavindos com o destino, sejam eles lusitanos ou dos que percorrem o mundo,
transpõem fronteiras, à procura do paraíso que, para eles, está sempre mais
além e, cada dia que passa, parece afastar-se mais e mais. Não chega a estar no
horizonte, mas sempre para lá, muito para lá do horizonte, de qualquer
horizonte…
De braço estendido, arrastando uma
muleta e uma perna destroçada; prostrados sobre si próprios num sono que
antecipa um desejo de morte; tocando instrumentos afinados pelos passos
apressados ou interpretando um canto agónico que não há álcool suficiente que
afine; com os filhos no colo que nunca pôde ser abrigo e ternura; estes
humanos, demasiado humanos, são também uma das faces de Lisboa.
Vivendo na miséria, ainda assim
mantém um traço de humanidade que me surpreende: a capacidade de partilha.
Vejo-os, repetidamente, a dividir o que têm, o que conseguem com as esmolas.
Mas, também, são capazes de desenvolver mecanismos apurados de sobrevivência.
No cais das colunas, lugar onde o
Tejo beija de forma mais intensa, repetida e cúmplice a cidade, há meses que
para sobreviver um casal esculpe uma efémera estátua com areia do rio. Começou
por ser um cão, seguindo o modelo do seu próprio cão; passou, posteriormente,
para um sofá onde o dito cão aparece refastelado e, numa última versão, o sofá
com o cão e ainda uma miniatura de um canídeo na frente junto à caixa que
espera pacientemente as moedas que possam cair. A actualidade política está
também presente, com palavras de ordem escritas a vermelho: Build sofas, not walls ou Welcome friends except Donald Trump.
Ora bem, os artistas têm também
que descansar, é a sua parte humana. As moedas ganhas durante o dia deverão
providenciar uma refeição, um lugar de sono e pouco mais. Para ser justo aos
factos, providencia ainda umas cervejas ou uma garrafa de tinto, inteiramente
merecidas, de resto. Assim, cedo, numa manhã morna de um dia feriado, o artista
ainda ausente, a escultura com marcas esparsas das gotas de chuva que caíram
durante a noite, foram a oportunidade imperdível para multiplicar a gente feliz
e a afirmação mais convincente do valor e importância da arte.
Um dos mendigos, daqueles do
braço estendido e da muleta, apropriou-se do território museológico do cais e,
timidamente, sempre em modo de alerta, não fosse o verdadeiro artista sair
subitamente das areias, encostou-se à parede, qual guardião desta esfinge que
se desmoronava, não sem antes colocar a sua caixa de cartão à frente da peça, e
aguentou, tanto tempo quanto lhe foi permitido pelo seu medo, a invasão do
território alheio. Algumas moedas foram caindo, algumas moedas foram sendo
recolhidas e nessa parte da manhã o artista foi o verdadeiro mecenas. Em pouco
tempo o dia ficou ganho e tão lesto quanto a muleta lhe permitiu afastou-se
do lugar do delito.
A meio da manhã com os escultores
ainda ausentes, a efémera obra continuava a ser visitada, registada
fotograficamente, enquadrando o Tejo e a ponte vinte e cinco de Abril, e dando
azo a comentários que oscilavam do espanto à estupefação. Faltava porém o
artista, o curador ou, no mínimo, o vigilante. Mas não faltou durante muito
tempo…
O aguarelista residente no cais
fixou as suas obras, acomodou os seus parcos haveres e sondou rapidamente o
vigor do comércio matutino. Poucos eram os potenciais clientes, pouco interesse
despertavam as suas suaves aguarelas, mas muito interesse despertava o sofá, os
canídeos, as palavras de ordem e o enquadramento.
O sol era pouco e o chapéu podia
ser dispensado para funções mais elevadas e mais altruístas. Aproximou-se e
numa reverência estudada descobriu a cabeça e posou o chapéu na frente da
escultura. Encostou-se ao pilar e não foi preciso esperar muito para que as
moedas fossem caindo de mãos reconhecedoras da grande arte. A musicalidade das
moedas a tocarem umas nas outras deve ser para estes homens o verdadeiro, o
sublime hino à alegria. Sem outra fonte senão esta que brota da boa vontade,
não é difícil perceber esta selecção musical…
Mas se se partilha o que é
exíguo, também se protege a pequena propriedade, e em virtude desse desígnio o
homem da bandeira, que empresta o símbolo nacional a troco de uma moeda,
cuidadoso ao verificar que no chapéu estava uma nota de cinco euros, que podia
levantar voo como se de uma gaivota se tratasse, lesto se apressou a alertar o aguarelista dono
do chapéu que, com rapidez e destreza, a guardou no bolso registador.
Primeiro fora uma caixa de
cartão, agora era um chapéu e logo mais, chegados que fossem os modeladores da
areia, seria um pano, a recolher as migalhas que somadas tornam possível somar
dias.
Acredito que o homem da caixa, o
homem do chapéu, o escultor de areia e, talvez, até, o homem da bandeira,
pertencem todos a uma mesma família e que um cão de areia os guarda e alimenta
a todos, o que vem provar de forma decisiva que o cão, mesmo de areia, continua
a ser o melhor amigo do homem.
3 comentários:
Eis uma prova de contacto com a rua que me faz mexer olhos e pernas! Uma sequência, pois, de uma quantas "fotos"( a preto e branco?) obtidas a partir dos teus andares.
E há tantos lugares por onde ir: Cais do Sodré, Moniz, topo do ascensor, Chiado, sei lá...Fico à espera de ler mais!
Um abraço,
RM
TESTES, TEXTOS?!...
Que diabo, a teta da criação, foi-se?
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