Ao fim de incontáveis horas de
balanços, muitos mais do que alguma vez um colo lhes tenha dado, retornam a
terra.
Falam alto,
como se quisessem ouvir-se acima das ondas, desse ruído permanente para ouvidos
que perderam aos poucos a poesia e a música tão do agrado dos visitantes
ocasionais. Não há nomes, apenas designações úteis de modo a não comprometer,
esse é o jogo. E há um gosto, quase infantil, de intimidar, de veladamente
inventar uma vida marginal. A dureza, a virilidade, a masculinidade, é avaliada
pelo confronto com a autoridade, um homem para ser homem tem que ter batido,
ameaçado, ou chamado nomes (mesmo que entre dentes) a um bófia. Só assim merece
ser homem, só assim merece respeito, só assim pode amedrontar os forasteiros
vindos de longe, dos lugares da legalidade, onde habitam os domesticados, os
que nunca insultaram um único bófia que fosse...
Todos
estiveram presos, todos saíram na semana passada, os menos afortunados saíram
ontem. Hoje ganharam duzentos euros, hoje ganharam tanto que talvez possam
comprar uma gaja, uma bebedeira, uma viagem vertiginosa, dificilmente uma
felicidade ancorada.
De cócoras
escolhem as pedras que se entremearam na amêijoa. São negras as pedras e a
amêijoa, são negras as mãos, os rostos, e o sorriso para lá caminha. A vida
aqui é dura e pouco extensa. Contam-se pelos dedos os que passado o meio século
ainda arrastam o aparelho. Este precisa de braços fortes, este alimenta-se de
braços fortes que aos poucos ali vão deixando o músculo e o nervo.
Quando a fibra
já não permite viagem rentável, ficam na praia olhando o rio e o perfil
longínquo da cidade, ajudam a puxar o barco, a carregar um saco para se dizerem
vivos, e partilham as memórias com os que pisam o areal. Há sempre um barco que
precisa de afagos de nova pintura, há sempre uma cerveja que precisa de ser
bebida, há sempre uma conversa que ficou de ontem, e há sempre que arejar o
olhar para o recolher nas tempestades.
Habitualmente
de poucas palavras, mas quando se entusiasmam deixam numa conversa a vida toda.
Dos filhos, das mulheres, das desgraças, dos sonhos, das vitórias, da guerra,
da vida toda nesse lugar, tudo se diz numa vertigem de quem sabe que pode não
haver outra maré e se houver nada nos garante que será propícia a navegações.
O rio corre
para a foz e afaga o ventre prenhe dos pequenos barcos vermelhos. As sombras
dão lugar ao festim de luzes. A cidade deita-se na margem como uma serpente.
Algumas
amêijoas não sabem que esta será a sua última noite morada no rio, amanhã umas
mãos calejadas as separarão das pedras e, por uma estranha magia, as
transmutarão em euros, amores fortes, francos e fátuos e numa interminável gama
de anestésicos em um qualquer porto-bar da Trafaria.
1 comentário:
A realidade é o filme e o escriba só tem que o fazer passar pelo ecrã de acordo com o seu ponto de vista emocional!
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