Curiosamente
não as vejo perder o viço da cor acabada de pintar, no entanto, o artista,
crestado dos dias carregados de sol, é cada vez mais castanho. Apenas uma
ligeira linha branca na testa assinala onde termina a sombra protetora do
barato chapéu de palha e recomeça a cor antiga.
Aguarelas
de Lisboa num humilde escaparate voltado de costas para a foz do Tejo competem
com o vivo olhar. Entre o real e a representação, apesar do esforço do artista,
poucos são os que se deixam seduzir por sofrível arte. Deviam esmaecer, ganhar
o tom que anuncia o fogo já cinza, mas não. O elétrico continua em movimento no
seu amarelo forte, o cavalo da estátua brilha à altura da crina no seu
imponente bronze, o busto do poeta ofusca na sua marmórea brancura, o rio corre
em forma de inverno no seu azulão de nuvens. Tudo cheira a tinta recente em
antiga imagem. A memória não é muito exigente, mas a recordação sim.
No
intervalo dos dias iguais, desce os degraus e na humidade que sobe do Tejo já
mar, arremessa restos de pão às gaivotas que se renderam à terra. Gostava de
saber o que se passa no íntimo de um animal que podendo voar para onde o ar é leve
e puro, prefere esperar por migalhas de asas caídas. Ou no coração de um homem
que, podendo caminhar sem fronteira nem destino, fixa, temeroso, raízes contra
as tentações.
As
pessoas chegam em contínuo. Mulheres exóticas molham os pés cansados e esquecem
o corpo no calcário cais. Homens de vozes e feições estranhas treinam o ver à
distância entre margens. As crianças chapinham felizes porque não têm os pés
cansados e podem olhar sem compromisso a espuma e outras coisas efémeras. Entre
luas as águas arredondam as arestas. Entre sóis as lajes riscam em surdina o
nome dos que passam.
Dos
arrebatadores beijos, tentativa frustre de devorar a alma, até ao choro do
amargo desespero, capaz de altear o Tejo sobre o Bugio, lá onde o rio e o mar
se confundem no doce e no sal, nesse palco, tendo por espectadores indefectíveis
o vento, a água e a distância, o mundo todo desagua em babel festim, enquanto um
estrangeiro de si mesmo, ilude o tempo entre marés e malte, aguardando que uma duvidosa
aguarela valha um dia de cada vez.
1 comentário:
Porque não te obrigas, obrigam a escrever? Abraço!
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