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sábado, maio 02, 2020

memória de adriano


Curiosamente não as vejo perder o viço da cor acabada de pintar, no entanto, o artista, crestado dos dias carregados de sol, é cada vez mais castanho. Apenas uma ligeira linha branca na testa assinala onde termina a sombra protetora do barato chapéu de palha e recomeça a cor antiga.

Aguarelas de Lisboa num humilde escaparate voltado de costas para a foz do Tejo competem com o vivo olhar. Entre o real e a representação, apesar do esforço do artista, poucos são os que se deixam seduzir por sofrível arte. Deviam esmaecer, ganhar o tom que anuncia o fogo já cinza, mas não. O elétrico continua em movimento no seu amarelo forte, o cavalo da estátua brilha à altura da crina no seu imponente bronze, o busto do poeta ofusca na sua marmórea brancura, o rio corre em forma de inverno no seu azulão de nuvens. Tudo cheira a tinta recente em antiga imagem. A memória não é muito exigente, mas a recordação sim.

No intervalo dos dias iguais, desce os degraus e na humidade que sobe do Tejo já mar, arremessa restos de pão às gaivotas que se renderam à terra. Gostava de saber o que se passa no íntimo de um animal que podendo voar para onde o ar é leve e puro, prefere esperar por migalhas de asas caídas. Ou no coração de um homem que, podendo caminhar sem fronteira nem destino, fixa, temeroso, raízes contra as tentações.

As pessoas chegam em contínuo. Mulheres exóticas molham os pés cansados e esquecem o corpo no calcário cais. Homens de vozes e feições estranhas treinam o ver à distância entre margens. As crianças chapinham felizes porque não têm os pés cansados e podem olhar sem compromisso a espuma e outras coisas efémeras. Entre luas as águas arredondam as arestas. Entre sóis as lajes riscam em surdina o nome dos que passam.

Dos arrebatadores beijos, tentativa frustre de devorar a alma, até ao choro do amargo desespero, capaz de altear o Tejo sobre o Bugio, lá onde o rio e o mar se confundem no doce e no sal, nesse palco, tendo por espectadores indefectíveis o vento, a água e a distância, o mundo todo desagua em babel festim, enquanto um estrangeiro de si mesmo, ilude o tempo entre marés e malte, aguardando que uma duvidosa aguarela valha um dia de cada vez.

1 comentário:

Renato Monteiro disse...

Porque não te obrigas, obrigam a escrever? Abraço!