Número total de visualizações de páginas

quarta-feira, outubro 08, 2025

Do tempo antes do tempo

 


Chegava sempre a horas, aliás, chegava sempre muito cedo, antes mesmo dos relógios sobressaltarem os segundos. Esse tempo, antes do tempo, que lhe sobrava, era uma janela para se imiscuir, confundir, imaginar na vida dos passantes. De todos os lados concorriam passos e vultos, às vezes, pessoas completas, que se cruzavam em contorcionismos vários confirmando as raízes dos dias. O ar ligeiro, adocicado e fluido da noite, ganhava um corpo ruidoso e áspero e agarrava-se à roupa, às mãos, aos olhos manhã dentro. Todos eram atletas e corriam, corriam, como se mais à frente estivesse algo que merecesse o esforço e a investida não hesitante. As conversas eram breves e adornadas, quase em exclusivo, monossilabicamente. Saberiam dizer palavras esdrúxulas e conjugar um qualquer verbo irregular ou essa era apenas uma estratégia contra a discussão estéril que alonga as palavras para apoucar o sentido? Camioneta, metro, elétrico e passos, suficientes passos para a ofegação. Ainda assim, pouco escapava à minuciosa avaliação que repetidamente levava a cabo: o funcionário público, a telefonista, a empregada de balcão, o moço de recados, a desempregada, o talhante, a estudante, a enfermeira... Quem sabe se estes catálogos de vidas múltiplas estavam certos, eram adequados, diziam alguma verdade. Para si e em si diziam. Essas personagens com ossos articulados e nomes de batismo eram suas quando as olhava e recolhia para lhes imaginar um ajustado destino. Em cada novo dia, em cada nova viagem, em cada recolher silenciando a vida para que o sono sobreviesse, recompunha uma nova história com as personagens recolhidas há pouco e já em fuga da memória. A escrita antes do sono, sem papel nem tinta, nem qualquer outro suporte físico, que não a sua mente inquieta, era uma espécie de tessitura do fio de Ariadne que lhe ligava os pedaços da vida e evitava que esses se desconjuntassem devedores do desespero. Uma epopeia de gente comum com asas de arara rara e adornos de lantejoulas sempre que se aproxima o fim de semana. Levá-los-ia a todos para dentro da sua morte e, nessa quietude lapidar, revê-los-ia num derradeiro looping para avivar a memória de ter sido.