Chegava sempre a horas, aliás,
chegava sempre muito cedo, antes mesmo dos relógios sobressaltarem os segundos.
Esse tempo, antes do tempo, que lhe sobrava, era uma janela para se imiscuir,
confundir, imaginar na vida dos passantes. De todos os lados concorriam passos
e vultos, às vezes, pessoas completas, que se cruzavam em contorcionismos
vários confirmando as raízes dos dias. O ar ligeiro, adocicado e fluido da
noite, ganhava um corpo ruidoso e áspero e agarrava-se à roupa, às mãos, aos
olhos manhã dentro. Todos eram atletas e corriam, corriam, como se mais à
frente estivesse algo que merecesse o esforço e a investida não hesitante. As
conversas eram breves e adornadas, quase em exclusivo, monossilabicamente.
Saberiam dizer palavras esdrúxulas e conjugar um qualquer verbo irregular ou
essa era apenas uma estratégia contra a discussão estéril que alonga as
palavras para apoucar o sentido? Camioneta, metro, elétrico e passos,
suficientes passos para a ofegação. Ainda assim, pouco escapava à minuciosa
avaliação que repetidamente levava a cabo: o funcionário público, a
telefonista, a empregada de balcão, o moço de recados, a desempregada, o
talhante, a estudante, a enfermeira... Quem sabe se estes catálogos de vidas
múltiplas estavam certos, eram adequados, diziam alguma verdade. Para si e em
si diziam. Essas personagens com ossos articulados e nomes de batismo eram suas
quando as olhava e recolhia para lhes imaginar um ajustado destino. Em cada
novo dia, em cada nova viagem, em cada recolher silenciando a vida para que o
sono sobreviesse, recompunha uma nova história com as personagens recolhidas há
pouco e já em fuga da memória. A escrita antes do sono, sem papel nem tinta,
nem qualquer outro suporte físico, que não a sua mente inquieta, era uma
espécie de tessitura do fio de Ariadne que lhe ligava os pedaços da vida e evitava que esses
se desconjuntassem devedores do desespero. Uma epopeia de gente comum com asas
de arara rara e adornos de lantejoulas sempre que se aproxima o fim de semana. Levá-los-ia
a todos para dentro da sua morte e, nessa quietude lapidar, revê-los-ia num derradeiro
looping para avivar a memória de ter sido.
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