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quarta-feira, junho 25, 2008

do carvão ao tinteiro


Dei comigo a pensar que os escritores são indivíduos normais, pacatos, perfeitamente misturáveis com outros humanos Vulgaris de Lineu, apenas com uma audição mais arguta e talvez, também, com um especial dote para traduzir línguas em vias de exposição, ou em potência, como diria Aristóteles.
Olhei para cima da mesa e vi um usado, mas ainda com um porte nobre, recipiente para lápis, esferográficas e canetas. E eles, multicolormente dispostos, estavam ali como uma espécie de desafio. Era como se me dissessem: agarra-me e obriga-me a dizer o que tenho em mim. Sim, porque afinal todas as histórias, todas as grandes ideias, todos os romances e todos os poemas saíram de dentro de uma caneta, de uma esferográfica ou de um lápis. Não é preciso ser adepto de ficção científica para ousar dizer que são eles os autores, são eles que riscam o papel o cartão e deixam traços contra o tempo. É bem possível que esteja neles: na mina negra, na tinta azul, no pigmento entre o cinza e o preto, todas as histórias que megalómanos vários disseram ser suas. Alguém viu, alguém testemunhou, alguém sabe, de um romance, de uma reflexão filosófica, de um poema, escrito com ideias em vez de tinta?
Poderá muito bem haver uma alma na tinta, um coração que se esgota cada vez que se afia um lápis, uma dor violenta e indizível no impressivo borrão do aparo que morre inclinado demais.
Todos falam do papel, da sua brancura atemorizante, do desafio à vertigem, da provocação aos olhos que só pedem tréguas, e todos se esquecem que quem verdadeiramente o ama porque se funde nele é a tinta, é o aparo que o risca como unhas na carne, é a esfera que rola e por magia vai deixando atrás de si interrupções no branco que aprendemos a dizer por palavras. Nós apenas ouvimos o que o lápis diz de forma difusa e desconexa, mas o escritor é aquele que tem uma acuidade especial para a voz que circula entre o tinteiro e o aparo e o muito ouvir chega a transformar-lhe o sangue em tinta permanente.

2 comentários:

Anónimo disse...

Que as ideias te surjam sempre com essa clareza encontrada entre o papel e a tinta. Grande Beijo.

Anónimo disse...

Quando nos prmeiros tempos da longa e vitalícia minha caminhada enquanto escritora sem nome nem títulos, apenas com o desejo profundo de preencher folhas brancas com pensamentos controversos ou desabafos anónimos, pensava que utilizar a caneta com o flugor de quem colhe a primeira maçã e descobre o prazer terreno da vida e da alma conseguiria libertar todos os devaneios conscientes do meu inconsciente. Escrevi, escrevi até as mãos arderem, sujei resmas de folhas com rabiscos privados pelo nome de outros que apenas existiam em mim e que hoje permenecem entre nós pelo simples facto de a caneta os ter registado. Mas num desses dias nublados em que o sol se confunde com as nuvens, e nos parece confundir o relógio não consegui mais. Pousei a caneta e entreguei-me Às teclas da tecnologia, não poderia abandonar a escrita porque dela me mantenho, mas não poderia mais limitar as minhas ideias furiosas ao atraso das minhas mãos. E troquei a caneta que fez nascer personagens pelo teclado que as fazia avançar, que as fazia nascer com a velocidade que nunca eu teria imaginado. Ainda vejo limitações entre as minhas pequenas mãos e o ecrã de mil cores, tantas vezes ficam coisas por dizer e tantas vezes escrevo coisas inúteis. No entanto o papel tem outra magia, é como um desafio à capacidade ondulante das ideias, parece sempre branco demais, parece implorar ser preenchido pela tinta de uma caneta. E quando olho para a estante preenchida dos grandes nomes e retiro apaixonadamente um livro impresso de ideias que nasceram numa dessas folhas brancas, penso que talvez me tenha atraiçoado. Porque em tantos desses livros não são apenas letras que se confundem, são ideias que florescem e acrescentam conflitos a outros intervenientes. é como olhar para a alma de cada um e poder conhecer o que se diz ser a essência de cada um. A evolução coexiste connosco e é como ter uma outra caneta sem esfera mas com o mesmo propósito. O registo é o modo mais importante de fazer perdurar o que muitos temeram esquecer, e enquanto poder registar o que a memória nem sempre conserva, acredito que o importante não passa pelo artefacto mas pelo desejo.