Para que se saiba, ou
para que apenas fique registado, independentemente de se vir a saber ou de,
sequer, interessar a alguém, vou contar a história da bailarina que caiu em
desgraça e acabou a dançar ao sol e para outras estrelas de menor importância.
Não muito longe no tempo, mesmo sem saber se é ele que passa
ou se somos nós que passamos e, deste modo, fazemos o tempo, uma jovem de
tamanha leveza, que inúmeras vezes se confundiu com uma ave, vivia no auge de
toda sua magnificência, abundava a força, a vitalidade, a beleza, o arrojo, o
desprendimento por tudo o que fosse além do fruir o imediato. Esta rapariga,
passado que foi o tempo próprio de o ser, logo depois mulher, tinha tudo de que
é feito a riqueza, mesmo aquela riqueza que se vê no que se possui por mero
capricho ou ostentação, coisas pequenas a que nenhum ser humano escapa, por
mais perfeita e bem acabada que seja a obra... Ora, alguém assim, imagina-se
imortal em demasiados momentos para ser verdade, mas dificilmente aceita que
isso seja miragem, ou coisa impossível de mais para ser parte da realidade. E,
quando essa sensação de imortalidade se apossa de alguém, a única modalidade de
acontecimentos que a trará de novo ao reino dos simples mortais é aquela que
fala das grandes desgraças, das hecatombes que fazem eco e permanecem
arrastando-se por muito tempo.
Todos os palcos se renderam ao seu encanto, à magia com que
riscava figuras no espaço, figuras que passariam a viver para sempre na memória
dos que felizes a viam nesses momentos fugazes de que se faz a eternidade. Teve
amantes demorados e de corpo inteiro e outros que no instante seguinte fugiram
para não cair no abismo da perdição. Teve promessas de enlouquecer só por uma
única dança e dançou algumas para satisfazer a sua perfídia e outras para desgraçar
propositadamente a sua pífia educação católica. Teve a aura do sucesso que lhe abriu
as portas mais difíceis e a guindou aos concorridos lugares da fama. Teve dias
sem calendário e noites longas de mais para caberem em palavras.
Os seus movimentos eram graciosos por natureza e, por isso,
pouco esforço dedicava ao treino do corpo. Tudo em si fluía como se só assim
pudesse ser. Todos os outros camaradas de companhia sofriam as agruras das
longas horas a tentar domar o corpo e a suportar a dor de exigir de um humano
tarefas sobre-humanas. A inveja mascarava-se nos curtos sorrisos e na raiva
interior. Ninguém consegue perceber porque o destino escolhe sempre os outros
para brilhar e nos reserva uma tíbia luz que nem nas trevas mais pesadas alumia
rosto inteiro.
Mas o deslumbramento!…
Muitos nos esquecemos daquilo que o deslumbramento é capaz de trazer e já muito
longe e alto na queda vai Ícaro para ainda haver memória bastante; e Narciso
também já demasiadas vezes viu o inverno destruir-lhe o esplendor e a beleza,
que a primavera paciente recompõe uma e outra vez, para que ainda haja quem
recorde a sua insana sina. Se a nossa bailarina apenas suspeitasse que arrastamos,
da mesma forma que os cometas o fazem com a cauda, todo e cada gesto, toda e cada
decisão, todo e cada instante de estarmos vivos – porque é esse o preço de
estar vivo! – talvez desenhasse ainda passos noutros palco e percorresse outras
inflexões musicais… Mas, se assim fosse, ou tivesse sido, nunca eu a teria
visto bailar como as aves do paraíso num cais que é o palco do Tejo, e isso
seria desequilibrar o universo das memórias que contam.
A perdição ou a salvação de uma vida, que é única e vivida sem
mestre nem livro de instruções ou possibilidade de apagar e reescrever, chega
de muitas e variadas formas e talvez apenas o poeta e a bailarina tenham
percebido o que nela verdadeiramente se joga, e só eles possam afirmar de forma
absolutamente autêntica: «Mais qu’importe l’éternité de la damnation à qui a
trouvé dans une seconde l’infini de la jouissance?»
3 comentários:
Há muito que nos desabituaras a expressões como esta:
"Teve dias sem calendário e noites longas de mais para caberem em palavras."
E esta:
" Teve amantes demorados e de corpo inteiro"
E ainda esta:
"(...) imagina-se imortal em demasiados momentos para ser verdade(...)"
O que pergunto agora: a coisa é para ficar no estendal durante muito tempo ou para pôr mais roupa no arame?
Um abraço,
RM
só se pode tratar de surdez seletiva, utilizo estas expressões cada vez que falo mas ninguém me ouve... é como a fotografia,apesar de ser a preto e branco só veem o cinzento...
nada dói tanto como a incompreensão dos próximos...
E vai fazer um mês, que não vejo nada de novo aqui!
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