baco no cais
Atrás de si ficava uma estrada só
de perfume e um esquecimento permanente de onde viera. Trazia na mão mais à
direita um chocolate, de onde já libertara a vaca que habitualmente pasta junto
à percentagem do cacau, por isso a prata estava pronta para repousar na
braseira. Na superfície mais fina do olhar balançava um palhaço, um chapéu de
três bicos e um urinol de barro novinho em folha. Só sabia os nomes dos
pássaros do entardecer, porque nunca saía de casa com o sol a este e porque não
queria acordar demasiado cedo o palhaço que trabalhava no turno da noite e só
começava a sonhar quando abria a alvorada. Nunca fora a Espanha, mas sentira
múltiplas vezes esse vento espesso que soava a castanholas e flamenco e
empurrava para cá da fronteira chapéus de três bicos negros como a fome e a morte
no choro dos contrabandistas de palavras impronunciáveis. Se os passos não o atraiçoassem, a sua vida
caberia em meio século, mas esses passos de barco tempestuoso arrastavam para
muito mais longe o calendário dos dias idos. Ainda bem que a memória se gastou
como uma borracha se gasta ao apagar o desnecessário, o errado sem remédio, o
esboço que não tem beleza nem nunca fará rir o universo. Ainda bem, pois assim
podia morar em exclusividade o presente, sem raízes nem amarras, sem rumores
nem remorsos, sem outros que morassem em si sem convite nem desejo,
e beber, beber para ser oceano, beber desalmadamente sem suscitar cobiça, todos
os mágicos líquidos que o faziam voar sobre lugares mais auspiciosos em ar e beleza por um urinol de barro novinho em
folha.
1 comentário:
Este texto fica na prateleira do esquecimento se não houver outros que lhe sucedam!
Abraço!
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