Eu
nem sempre sei qual será o enredo do próximo momento e, esse facto, ao invés de
me perseguir como uma ameaça, deixa-me a pensar que a liberdade é possível.
Liberdade em pequeno formato, simples constatação de não saber programar à
distância, péssimo gestor do tempo, outra forma de ser veleiro…
Tudo
o que se possa dizer a propósito do modo como cada um faz a gestão do seu tempo
é aceitável. Sei que há aqueles que temem um segundo de vazio como os beatos
temem o mais pueril dos pecados, ambos sofrem terrível e irremediavelmente essa
queda no abismo. Mas há outros que navegam sem carta, ou o moderno gps. Hesito
em chamar-lhes aventureiros, embora também estes caibam nesta secção, e por
isso chamo-lhes apenas espetadores pacientes. Sabem que por mais tarde que
cheguem haverá sempre um lugar para eles e, mesmo que o lugar não seja o
melhor, isso não significa que a cena de entrada que perderam roube a magia do
filme ou que aquilo que não viram não possa ser imaginado com vantagens e deslumbramentos
que o realizador sequer sonhou.
Também
não tenho muitas certezas, embora oiça amiúde dizer que a idade nos traz
certezas. Pois, a mim, a idade traz-me tempo e pouco ou nada de certezas… Claro
que fica bem aos olhos dos outro, e à composição da nossa autoimagem, afirmar sem
um átimo de hesitação que ter certezas, ter fixado respostas definitivas, é uma
prova de maturidade, mas… e as dúvidas que ficaram instaladas nos bastidores, e
a sombra sinistra que tira o resplendor que tal solar afirmação aparentemente
transporta? Frequentemente me lembro do outro que tinha amigos que nunca tinham
levado porrada, apenas ele parecia ter nascido para saco de boxe, e sei que há
muitos amigos assim, gente forte, robusta, superior e que nunca, nunca por
nunca ser, se deixa cair, se deixa enrolar como uma serpente ferida de morte no
último abraço…
Dizem-nos
coisas ao longo da vida, dizem-nos o que já lhes disseram, e se hesitamos em
continuar essa cadeia de comunicação, essa veia aorta da tradição, desmerecemos
da confiança e não somos mais do que um ruído incómodo para a paz e tranquilidade
das boas consciências que urge silenciar. Depois há os corajosos, há os
cobardes e há aqueles que têm dias, sobretudo se há público para alimentar a
vaidade… Pois eu também sou daqueles que leva porrada, e talvez seja daqueles
que mais porrada dá a si próprio. Não nasci para grandes empreitadas, não nasci
para subir muitos evarestes, não nasci para inclinar a terra, não nasci para
conduzir os povos, mas também não nasci para me embebedar solitariamente. Nasci
para me embebedar de imenso, como dizia o poeta, e isso pode parecer uma
extrema ousadia, para os que se embebedam apenas com álcool ou com o ódio ao
que não é costume.
É
possível que a haja um jogo, que cada um joga à sua maneira, entre a vida e a
morte. Entramos em campo precocemente, dotados de muito poucas habilidades, e
vamos ganhando tempo. Tempo é o prémio. Cada vez que sobrevivemos a mais um luar
de insónia, a mais uma paixão em fim de festa, à perda daqueles que respiraram
perto das nossas mãos quando as apertaram, ao desaparecimento dos lugares onde
escondemos sementes para um dia virem à luz, ao ódio merecido porque fomos
crápulas quando podíamos não ter sido, ganhamos tempo. Mas, como nos modernos
jogos da era digital, vamos perdendo vidas atrás de vidas, ou como na biologia
vamos acumulando lixo nas células e somos cada vez mais incapazes de usar o
tempo para fazer a higiene necessária. Envelhecer pode ser, então, sinónimo de
fazer mau uso do tempo, de não ter tanto domínio sobre a pilha de segundos que
se acumulam e que pode agora ruir, apenas porque me esqueci de fechar a porta e
a corrente de ar os fez estatelar num chão que é duro de mais para que os
segundos caiam confortavelmente, como antes acontecia.
Não tenho a certeza...
1 comentário:
Absorve um certo verso de Álvaro de Campos, mas ultrapassa-o em inúmeras e pertinentes " considerações"... Muito bem! E agora, qual vai ser o próximo, e quando?
Um abraço de harmonia com o tempo que faz hoje: caloroso!
Enviar um comentário