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quinta-feira, agosto 02, 2018

da incerteza...


Eu nem sempre sei qual será o enredo do próximo momento e, esse facto, ao invés de me perseguir como uma ameaça, deixa-me a pensar que a liberdade é possível. Liberdade em pequeno formato, simples constatação de não saber programar à distância, péssimo gestor do tempo, outra forma de ser veleiro…

Tudo o que se possa dizer a propósito do modo como cada um faz a gestão do seu tempo é aceitável. Sei que há aqueles que temem um segundo de vazio como os beatos temem o mais pueril dos pecados, ambos sofrem terrível e irremediavelmente essa queda no abismo. Mas há outros que navegam sem carta, ou o moderno gps. Hesito em chamar-lhes aventureiros, embora também estes caibam nesta secção, e por isso chamo-lhes apenas espetadores pacientes. Sabem que por mais tarde que cheguem haverá sempre um lugar para eles e, mesmo que o lugar não seja o melhor, isso não significa que a cena de entrada que perderam roube a magia do filme ou que aquilo que não viram não possa ser imaginado com vantagens e deslumbramentos que o realizador sequer sonhou.

Também não tenho muitas certezas, embora oiça amiúde dizer que a idade nos traz certezas. Pois, a mim, a idade traz-me tempo e pouco ou nada de certezas… Claro que fica bem aos olhos dos outro, e à composição da nossa autoimagem, afirmar sem um átimo de hesitação que ter certezas, ter fixado respostas definitivas, é uma prova de maturidade, mas… e as dúvidas que ficaram instaladas nos bastidores, e a sombra sinistra que tira o resplendor que tal solar afirmação aparentemente transporta? Frequentemente me lembro do outro que tinha amigos que nunca tinham levado porrada, apenas ele parecia ter nascido para saco de boxe, e sei que há muitos amigos assim, gente forte, robusta, superior e que nunca, nunca por nunca ser, se deixa cair, se deixa enrolar como uma serpente ferida de morte no último abraço…

Dizem-nos coisas ao longo da vida, dizem-nos o que já lhes disseram, e se hesitamos em continuar essa cadeia de comunicação, essa veia aorta da tradição, desmerecemos da confiança e não somos mais do que um ruído incómodo para a paz e tranquilidade das boas consciências que urge silenciar. Depois há os corajosos, há os cobardes e há aqueles que têm dias, sobretudo se há público para alimentar a vaidade… Pois eu também sou daqueles que leva porrada, e talvez seja daqueles que mais porrada dá a si próprio. Não nasci para grandes empreitadas, não nasci para subir muitos evarestes, não nasci para inclinar a terra, não nasci para conduzir os povos, mas também não nasci para me embebedar solitariamente. Nasci para me embebedar de imenso, como dizia o poeta, e isso pode parecer uma extrema ousadia, para os que se embebedam apenas com álcool ou com o ódio ao que não é costume.

É possível que a haja um jogo, que cada um joga à sua maneira, entre a vida e a morte. Entramos em campo precocemente, dotados de muito poucas habilidades, e vamos ganhando tempo. Tempo é o prémio. Cada vez que sobrevivemos a mais um luar de insónia, a mais uma paixão em fim de festa, à perda daqueles que respiraram perto das nossas mãos quando as apertaram, ao desaparecimento dos lugares onde escondemos sementes para um dia virem à luz, ao ódio merecido porque fomos crápulas quando podíamos não ter sido, ganhamos tempo. Mas, como nos modernos jogos da era digital, vamos perdendo vidas atrás de vidas, ou como na biologia vamos acumulando lixo nas células e somos cada vez mais incapazes de usar o tempo para fazer a higiene necessária. Envelhecer pode ser, então, sinónimo de fazer mau uso do tempo, de não ter tanto domínio sobre a pilha de segundos que se acumulam e que pode agora ruir, apenas porque me esqueci de fechar a porta e a corrente de ar os fez estatelar num chão que é duro de mais para que os segundos caiam confortavelmente, como antes acontecia. 

Não tenho a certeza...

1 comentário:

Renato Monteiro disse...


Absorve um certo verso de Álvaro de Campos, mas ultrapassa-o em inúmeras e pertinentes " considerações"... Muito bem! E agora, qual vai ser o próximo, e quando?

Um abraço de harmonia com o tempo que faz hoje: caloroso!