No rio morre-se menos. Só esta vantagem já poderia justificar a
mudança, mas também as terras mais próximas e acolhedoras deixam-se domar pela
altura em que a fertilidade as impele a serem recetivas à semente.
Ao que soube quase todos, senão todos, os homens do rio foram, são, ou
ainda hão de vir a ser homens divididos entre marés e sementeiras. A pobreza
das águas não dava para sustentar todo o ano as bocas, vestir os corpos e
habitar uma casa. Em tempos em que a necessidade era mais comum e ofensiva, a
vergonha não deixava que este homens e mulheres vivessem noutros lugares e com
outros diferentes da sua mesma sorte. Assim cresceram ao longo das margens, desse
rio bilingue, aglomerados flutuantes de vidas, histórias que hoje só têm
registo na memória dos que já não têm memória e nas ruínas das pequenas casas
longe do chão como as cegonhas e dessas outras simulacros na proa das bateiras.
Apodrecem em conjunto as casas, que o não foram verdadeiramente, e os barcos de
um azul cada vez mais impercetível.
Ainda há quem adormeça ouvindo as pedras saltitando no virar das
marés, ainda há quem sonhe com redes repletas de sável e uma festa de escamas
reluzentes nas cestas e sobretudo nos olhos, ainda há quem cheire os ventos de
tempestade e adormeça entre rezas para nunca se afogar numa cama e na velhice,
porque uma morte feliz é quando a maré vira e a água deixa sulcos, como se
fosse um arado, na areia das margens.
2 comentários:
Um belo texto, quase a fazer-nos esquecer o quanto há a esgadanhar nas fontes históricas, evitando-se os repetidos lugares comuns ouvidos sobre os avieiros.
Deparei com a foto por mero acaso e estacionei no texto que a acompanha. E reli-o.
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